Jocê Rodrigues

Especial Vitiligo: o que sabemos da doença e do controverso tratamento cubano até o momento.

Imagem de capa: andreonegin/shutterstock

Faz algum tempo que notícias com chamadas que destacam a descoberta da cura do vitiligo por médicos cubanos tomam de assalto a nossa atenção na internet. Nessas matérias, a eficácia do produto é largamente divulgada, mas nenhuma informação aprofundada ou fontes de confiança são apresentadas.

Pensando nisso, o CONTI outra resolveu ir atrás e investigar para saber um pouco mais sobre o controverso tratamento cubano e sua real eficácia.

ATO I: A DOENÇA

A estética tem grande peso na hora da decisão por tratamentos. Próteses, ajustes, retoques, esticadas. A autoestima ganhou terreno junto com o avanço clínico em relação ao corpo e nas intervenções que nele são feitas constantemente.

Clinicamente, o vitiligo não apresenta nenhum mal à saúde. O problema, ao que parece, está na forma como outras pessoas enxergam a doença, caracterizada por manchas claras em algumas partes do corpo

Imagem Designua/shutterstock

FORMAÇÃO

O mecanismo de formação da doença tem diversas teorias, mas nenhuma delas está inteiramente provada até hoje. As mais consistentes, conforme as últimas pesquisas, são as teorias autoimune e genética.

A pessoa com vitiligo sofre um ataque autoimune contra os melanócitos (células que produzem a melanina) e o afetado fica então com manchas em algumas áreas da pele – existem casos extremos, em que quase todo corpo é afetado.

Uma proporção pequena de pacientes ainda pode apresentar problemas com a audição e inflamações nos olhos. Aproximadamente 15% dos pacientes têm ou terão alguma doença da tireóide associada.

De acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da Associação Nacional de Vitiligo, cerca de 2% da população mundial tem ou terá a doença.

“A maioria dos pacientes com vitiligo não tem parentes de primeiro ou segundo grau afetados. Somente em 20 a 25% dos pacientes se encontra uma história familiar positiva para vitiligo. Estes casos são de herança genética dominante”, explicou o doutor Roberto Azambuja, ex-presidente da Seção do Distrito Federal da Sociedade Brasileira de Dermatologia e um dos autores do livro Vitiligo: manual explicativo para pacientes e familiares (2013).

“Os demais casos possuem genes predispostos ao desenvolvimento do vitiligo, entretanto inativos. Fatores externos ou internos exclusivos para cada pessoa podem ativar algum desses genes, dando início ao quadro do vitiligo. Entre os fatores desencadeantes são conhecidos, luz solar, queimaduras térmicas, traumatismos da pele, dermatoses inflamatórias e estresse emocional.”

DIAGNÓSTICO

Para um diagnóstico correto é preciso análise clínica, pois é importante observar o aspecto das lesões que possuem formas diversas e bordas bem definidas.  Alguns locais muito característicos dessas lesões incluem pálpebras, axilas, comissuras labiais e dobras supra-ungueais (entre a pele e a cutícula).

Como complemento ao exame clínico, utiliza-se uma lâmpada de radiação ultravioleta de 351 nanômetros, conhecida como luz de Wood, que evidencia a ausência de melanócitos.

Raramente é preciso uma biópsia para o diagnóstico.

Anon.P/shutterstock

FATORES DE RISCO

Para Roberto Azambuja, o fator de risco relevante é a ocorrência de parentes em primeiro ou segundo grau.

O médico aponta para fatores emocionais que podem agravar o vitiligo, como “um período de intenso estresse, por evento de impacto emocional muito forte ou por certos tipos de comportamento, como pessoa cronicamente ansiosa, por depressão, por pensamento preferencialmente negativo”.

Ele deixa claro que não há conclusão sobre a exata influência de nenhum desses elementos e que mais estudos são ainda necessários para melhor o entendimento da doença.

PRECONCEITO

Caio Castro é médico dermatologista da Santa Casa de Curitiba, professor do curso de Medicina da PUCPR e o segundo autor de Vitiligo: manual explicativo para pacientes e familiares, junto com Roberto. Tornou-se referência no assunto quando,durante o curso de Doutorado em Ciências da Saúde da PUCPR, desenvolveu uma pesquisa inédita que revelou um importante gene de predisposição ao vitiligo.

A tese conquistou prêmios importantes, como o Prêmio La Roche-Posay 2011 de “Melhor artigo científico da América Latina” e levou o 1º lugar na categoria Teses e Dissertações da Sociedade Brasileira de Dermatologia. A pesquisa foi também publicada no Journal of Investigative Dermatology, a mais importante publicação do mundo na especialidade.

Uma dos temas com os quais Caio precisa lidar em sua rotina profissional é o preconceito em relação a quem tem vitiligo.

“Não é uma doença contagiosa e meus pacientes relatam o absurdo de não quererem apertar a mão ou ter contato físico com eles”, revelou. “Leigamente falando os pacientes estão sem ‘tinta’ (melanina) na pele, somente isso, sem nenhum risco para as outras pessoas, mas causa um desgaste emocional muito grande e compreensível nos afetados”, disse.

Olena Gorbenko/shutterstock

TRATAMENTOS

Embora existam diversas pesquisas relacionadas ao tratamento do vitiligo, não existe medicamento específico nem cura para o mesmo.

Os tratamentos disponíveis atualmente visam o bloqueio da comunicação celular autoimune e o estímulo à produção de melanina e sua distribuição pelas células da epiderme.

Os medicamentos utilizados visam corrigir o que foi gerado por uma reação partida de genes e levadas às células pigmentares por transmissão celular, não para uma cura.

“O vitiligo é uma doença órfã e não existe nenhum medicamento aprovado pela FDA (Food and Drug Administration) para ajudar na repigmentação”, esclareceu Castro. “O tratamento indicado e aprovado é com as diversas modalidades de fototerapia.”

OFF LABEL

Os remédios usados no tratamento são normalmente desenvolvidos e empregados para outras doenças. A esse tipo de uso que não consta na bula dá-se o nome off label.

“O corticóide oral e tópico é utilizado off label para tratamento do vitiligo que está em progressão. Outra medicação tópica off label utilizada é dos inibidores de calcineurina , no qual existem diversos estudos pequenos mostrando sua efetividade”, exemplificou Caio Castro.

Foi o tipo de tratamento usado em uma paciente americana de 53 anos por cientistas da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em 2015. Os resultados repercutiram bem no meio científico.

O medicamento em questão foi o tofacitinibe, empregado contra artrite reumatóide, mas nada foi garantido e mais pesquisas continuam a ser feitas.

ATO II: O TRATAMENTO CUBANO

O produto que até hoje causa rebuliço na internet atende pelo nome de Melagenina Plus e é derivado da placenta humana. É fabricado e vendido pelo Centro de Histoterapia Placentária (CHP), em Havana, Cuba. A instituição tem quase 30 anos de história e pertence ao Grupo Empresarial Bio­Cu­baFarma.

“Recebemos pacientes de mais de 80 países em nosso Centro. Recebemos gente dos5 continentes,mas com certeza México, Venezuela, EEUU e Colômbia ocupam os primeiros lugares entre os visitantesem buscapelos produtos derivados da placenta”, respondeu orgulhoso por email o doutor Ernesto Miyares, atual diretor do CHP.

Axel Bueckert/shutterstock

AFINAL, O QUE É A MELAGENINA PLUS?

“O extrato hidroalcoólico de placenta humana, Melagenina Plus, foi desenvolvido pelo ginecologista e farmacologista cubano Carlos MiyaresCao a partir de 1972 e passou a ser aplicado no tratamento do vitiligo em 1978. No Brasil foi vendido, em algumas farmácias, importado pelo escritório da Cubanacan, de 1990 até 2009. De lá para cá, não é mais vendido por razão não divulgada”, detalhou o médico Roberto Azambuja.

PROIBIÇÃO NO BRASIL

Em decreto publicado no Diário do União, em 2009, a  ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária)  proibiu a comercialização da Melagenina Plus  em território brasileiro.

Procurada pela reportagem, a ANVISA informou que “o referido produto teve sua renovação de registro indeferida em 2009, devido ao não atendimento de requisitos regulatórios” e que “o produto não se encontra em situação regular e não pode ser comercializado no país”. No entanto, não especificou quais foram os critérios que levaram à proibição da comercialização por aqui.

O caso da proibição da venda de Melagenina Plus no Brasil parece ser um mistério até mesmo para Ernesto Miyares.

“A Melagenina e outros produtos eram comercializados em São Paulo, em uma clínica cubana que atendia pacientes e tinha autorização para vender os produtos cubanos. Recebemos a inspeção da ANVISA em nossa sede cubana. Não existia proibição de nenhum tipo”, contou.

QUAL A REAL EFICÀCIA DA MELAGENINA PLUS?

Ernesto defende a eficácia de 86%, em ensaios clínicos realizados por ele e sua equipe. Na opinião de Azambuja, que fez treinamento em Havana,no CHP em 1989 e trabalhou com Melagenina Plus durante 20 anos, enquanto esteve disponível no Brasil, o número apresentado por Miyares é um pouco exagerado.

“É um excelente tratamento, com efetivo potencial de repigmentação (restauração da cor natural da pele), sem efeito colateral. Não há garantia de que vai curar o vitiligo nem a percentagem de ação positiva se aproxima do que é a divulgada pelos cubanos”, comentou. “Entretanto, se funcionar bem, é o tratamento que dá o melhor resultado estético de todos os disponíveis, fazendo com que a pele readquira seu aspecto natural, sem resquício de manchas. É seguro para uso em crianças e em grávidas.”

RESULTADOS VARIÁVEIS

Roberto frisa que o tratamento com Melagenina Plus não é reconhecido fora de Cuba e que em nenhum país houve uma pesquisa séria e extensa sobre seus resultados.

“Os dermatologistas o condenavam dizendo que não tinha comprovação científica, o que é inverdade. O produto foi desenvolvido segundo os protocolos científicos”, defendeu.

“Por outro lado, todos os dermatologistas prescrevem cegamente as substâncias tacrolimo e pimecrolimo como se fossem a cura do vitiligo, embora o único emprego que elas têm, conforme o FDA, é no tratamento de dermatite atópica. Seu uso é baseado em poucos estudos com poucos pacientes e por pouco tempo, os quais indicariam que têm ação equivalente à dos corticoides, a qual atingiria 48% de repigmentação, sendo que efetivamente ela não é observada”, ponderou, antes de finalizar:

“Diante desses dois fatos, ouso dizer que a Melagenina Plus foi vítima de preconceito e, no caso do tacrolimo e do pimecrolimo, há fé cega. Em ambos os casos são atitudes não científicas […] É preciso entender que o extrato de placenta humana é mais um tratamento para vitiligo, não é a cura nem é superior aos outros, porque o que determina o efeito do tratamento é a reação do organismo de quem está sendo tratado. Afirmo, com minha experiência, que é um tratamento válido, sem nenhum risco e que dá a melhor repigmentação de quantos tratamentos existem.”

COMÉRCIO VIA IMPORTAÇÃO

Não existe nenhuma proibição para a aquisição de Melagenina Plus via importação e algumas agências de viagens ainda oferecem o pacote de tratamento na Clínica de Histoterapia Placentária.

O medicamento carro-chefe do CHP tem comercialização livres em países como Índia, México, Rússia, Ucrânia, Nicarágua, Salvador, Colômbia e Peru.

iordani/shutterstock

ATO III: A EXPERIÊNCIA DE QUEM FEZ O TRATAMENTO

Clarisse desenvolveu o quadro quando tinha 14 anos, em uma fase que ela descreve como cheia de inseguranças e complexos, fruto de uma profunda depressão que teve na mesma época.

“Foi duro, principalmente porque eu era uma adolescente frágil e despreparada, como todo adolescente…Inicialmente não percebi que havia aparecido; foi uma amiga médica da minha mãe que observou que poderia ser vitiligo. Depois disso parece que a mancha tomou uma dimensão desproporcional, e só enxergava isso. Começou nas orelhas, topo da cabeça, queixo e pescoço frontal”, descreveu.

“Foi um drama. Inicialmente disfarçava com maquiagem, mas depois de anos usando, minha pele criou uma rejeição alérgica, e com o tempo acabei aceitando.”

Mas, antes da aceitação, Clarisse tentou outros tratamentos como radiações combinadas com remédios de uso interno.

“Como o tratamento convencional de radiação fez efeito logo nos primeiros momentos, restando apenas a mancha do pescoço que trago até hoje, fiquei durante anos batendo na tecla da radiação, mas de forma estacionária. Chegou um ponto que dado o custo-benefício, tais como: deslocamento, custo do tratamento, e principalmente: risco – pois essas radiações provocam queimaduras, e os medicamentos, aliados à exposição das lâmpadas, poderia acarretar um câncer, tanto é que à época tinha que assinar um termo de consentimento –, resolvi parar o tratamento, e, aceitar, por total falta de opção”, relembrou.

IDA A CUBA

Clarisse foiuma das pessoas que viu no tratamento cubano uma chance de se livrar dos sinais indesejáveis do vitiligo.Faz 17 anos que ela foi para Havana, em busca da possível cura.

Através de uma agente de turismo, comprou um pacote para o tratamento, que incluía vôo, traslados, hospedagem e o próprio tratamento. Mesmo não sabendo precisar o valor, conta que, na época em que viajou, todo o pacote saía mais barato que uma viagem ao Nordeste, por exemplo.

“No dia da consulta, fomos num traslado cheio de estrangeiros latinos para se tratar (muitos argentinos), e muitos relataram melhoras e ótimos resultados (os que voltavam).Fiquei bem impressionada, era uma clínica muito boa e organizada, fui atendida no horário que me haviam agendado, por um médico que me pareceu muito competente e experiente, e que de todos os que estive, foi aquele que fez o exame mais minucioso. Minha acompanhante (sua avó) entrou comigo na consulta . Ao final eles receitam o Melagenina Plus, vendido na clínica, e deixam você levar a quantidade que você quiser. Lembro que levei uns 10, que os dois últimos acabei até dando, pois fui parando de usar, já que não teve resultado comigo (usou por aproximadamente 3 anos)”.

Mesmo que o remédio não tenha surtido efeito, Clarisse diz que a viagem valeu a pena e que a recomenda.

Victor Maschek/shutterstock

POR FIM, ACEITAÇÃO

Clarisse tentou aromaterapia por algum tempo, mas igualmente sem efeitos visíveis.

Sobre os motivos que a levaram a procurar por diversas formas de tratamento, a jornalista é firme:

“Não tenho dúvida de que foi o preconceito que me fez buscar uma cura para me livrar da mancha, e me fez, inclusive, não gostar de mim e não me aceitar por um bom tempo.”

Depois de muitas tentativasde se livrar da mancha que possui no pescoço, aprendeu a olhar para si mesma de forma diferente.

“Confesso que sinceramente não me incomoda mais, e após muitas terapias, conquistei esse salto quântico de não me importar com o olhar e a opinião dos outros. Isso te traz uma grande liberdade”, avaliou.“Essa é uma conquista que a maturidade me trouxe, que me faz sentir em não querer trocar de jeito nenhum meus quarenta anos pelos vinte e poucos. Hoje em dia assumi a mancha como inerente à minha pessoa. É algo que me torna diferente.”

Além de não mais se sentir incomodada, Clarisse demonstra certo orgulho ao contar que sua filha diz poeticamente que a mãe tem uma nuvem no pescoço.

“Apesar de haver superado a depressão, parece que a mancha sobreviveu só para me lembrar de não esquecer de ser feliz.”

ATO IV: CONCLUSÃO

Como pudemos observar, não existe um consenso entre os profissionais sobre o uso do tratamento cubano e o mesmo não pode ser encarado como fórmula milagrosa para a cura do vitiligo. Enquanto isso, o órgão regulador (ANVISA) parece não ver problemas em nos deixar no escuro em relação aos motivos da proibição do mesmo.

É desse jeito que várias teorias conspiratórias vão se criando. Desde uma que envolve um grande complô da indústria farmacêutica, até outra sobre suposta propaganda da esquerda para enaltecer Cuba –que não leva em consideração o fato de que, à época da proibição, Luís Inácio Lula da Silva era Presidente da República e Dilma Rousseff atuava como Ministra de Estado e Chefe da Casa Civil.

Jocê Rodrigues

Editor, escritor e jornalista.

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