E quem é que aguenta, sô menino e sá menina?
Falam pra gente parar de sentir as coisas. Eu recuso. É bom ser inteira. Ainda sofro com fins de relacionamentos: amizades, amores, morte de familiares. Como dizia Saramago:
“sou de carne e sangro todo dia”. Falam também que os evoluídos são os desapegados. Sei… Não acredito mesmo nisso. Pra mim evoluído é quem desperta e dá amor, doa-se em profundidade, importa-se e faz o bem que conhece, independente de para quem seja direcionado. Se houver reciprocidade, melhor ainda, mas sou do time dos que acha que o bem que se faz não é perdido na vida, não se dissipa aleatoriamente, mesmo se foi para alguém que não mereceu ou não retribuiu. Coisas da vida.
Dizem pra gente sentir menos, pois esse é o caminho seguro. Eu definitivamente recuso, e já até escrevi sobre isso antes aqui. Alguns sentem e demonstram mais que outros, são mais permeáveis, abaláveis, também costumam doar ao outro como poucos o fazem, doam amor, afeto, tempo, dinheiro, tudo enfim. O fato é que nem todas as pessoas são assim, reconhecem quem o é ou conseguem retribuir. Envolver-se pela metade, fazer joguinhos emocionais, encher-se de subterfúgios para esconder dos outros o que quer e frear os sentimentos parecem mesmo não sair de moda. Até aqui não senti a mínima vontade de fazer girar essa roda de fugacidade. Pra quê? Pra não ser fria. Considero isso um atraso para os afetos. Apesar das desilusões já terem feito pensar que não sentir coisas para não sofrer depois seria melhor, recuei logo depois. É muito triste ser frio e não sentir. A vida fica pequena. Quando estamos frios e apáticos não sentimos dor, porém também não sentimos as alegrias e os prazeres da vida. Eu não quero perder a capacidade de encantar-me com a vida, de sonhar com ela, de ver as cores de um rosto cheio de esperança ou amor. Deus me livre de não sentir! Quero sentir bem muito ainda.
Nesses dias de quarentena, muitos são os que estão contando sobre pessoas do passado que voltaram a entrar em contato após muito tempo de distância. Confusão danada tem dado isso. As razões podem ser inúmeras, entretanto como nós humanos gostamos de fantasiar, pode haver um romantismo de pensar que o outro fez isso porque finalmente descobriu um sentimento de amor que estava perdido. Será? Talvez seja a mesma ilusão que leva a pensar que após a pandemia as pessoas se tornarão moralmente melhores, afetivamente mais disponíveis, mais humanas ou coisas do tipo. A realidade tem mostrado que não é bem assim. No início do isolamento social uma multidão correu aos supermercados para estocar papel higiênico, comida e álcool 70, sem pensar minimamente nas necessidades do coletivo. Ao final de tudo isso não estaremos melhores, ou estaremos se quisermos – e não por isso.
Talvez esses “sumidos” estejam apenas procurando o conforto do passado, afinal, a realidade cruel para a qual não queremos olhar é que quem vive durante uma pandemia corre risco iminente de morte. Vocês já pararam para pensar como está a cabeça dos idosos após ouvirem diariamente que eles são as maiores vítimas da COVID-19? Parece fatalista, contudo apegar-se a um passado mais confortável é um movimento até compreensível. Ariano Suassuna disse em um texto que talvez ele fosse otimista, pois tentava ver o lado bom das coisas e das pessoas, embora admitisse que fosse por bobagem ou covardia. Talvez eu seja como ele e tenda a pensar que essas pessoas que agora reapareceram não sejam tão maldosas ou sacanas como estão sendo julgadas. Vejo que pode ser um movimento geral de medo da solidão. O medo nos leva à culpa e agimos movidos por ela. Há muita gente nesse momento com receio de perder quem ama, e isso é diferente de redescobrir sentimentos de amor perdidos nos ares do tempo.
Há quem diga que doenças graves levam pessoas a repensarem suas vidas e condutas, então como consequência disso elas mudam. Isso não é uma verdade absoluta (alias, nada é, eu sempre digo). Tenho um amigo cuja chefe era muito carrasca e cruel. Ela precisou passar por uma cirurgia grande, com estômago aberto, da qual todos achavam que ela não escaparia, pelos riscos que envolvia e pelas comorbidades que ela já tinha, diabetes, pressão alta, essas coisas. Ela pediu perdão ao meu amigo por tudo o que havia feito e dito, e reconheceu que tinha agido mal com ele. Meu amigo ficou todo comovido com isso, lembro. Ela sobreviveu à cirurgia e recuperou-se. Depois, continuou com o mesmo comportamento de antes, implacável e desrespeitosa. Resultado: ela não mudou, só estava com medo. À beira da morte a culpa costuma bater e mover atitudes. É bom identificar isso para não romantizar demais.
Claro que há os safados, sempre há. Há quem não quer nada duradouro com ninguém, está cheio de traumas de experiências vividas e nem desconfia disso, costuma ter relações apenas utilitárias, tá doido para transar e o momento de pandemia nada interfere nisso. Aí cabe a gente fazer a triagem, vivendo essa casualidade se quisermos, e não se iludir esperando compromisso se o outro não quer. O radar que detecta reciprocidade parece que tem estado desligado, quando deveria estar ativo a todo vapor. Infelizmente a recíproca nas relações nem sempre é algo motivado, pois a medida da dedicação que damos não significa necessariamente a medida que recebemos. Não há motivos aparentes, sentimentos não se comunicam às vezes, seres não se encaixam e isso é simples realidade. Há os que não desconfiam que são difíceis, que oprimem os parceiros, que destratam fingindo brincar, que são tóxicos e agressivos. Há ainda os vários casos de casais que se amam e buscam cultivar a reciprocidade, não conseguem todavia. Há muito adulto imaturo, desequilibrado e traumatizado no mundo. Isso deve influenciar, então talvez muitos não se doem por incompetência para isso. Ouvi nessa semana a linda música “Diga que me ama ou vá embora”, da banda “A cor da terra” ( ouça nas redes sociais Facebook e Instagram ), e a letra encaixou-se como uma luva em tudo isso que estava pensando. Versos cirúrgicos, principalmente quando diz “ Se não sabe ao certo o que você procura, eu não tenho resposta pra lhe oferecer”.
Tenho admiração pela modernidade das relações da geração millennials. Esses jovens de vinte e poucos anos vivem o momento e não se apressam em nomear suas orientações afetivas, comportamentais e sexuais. São menos metódicos e mais sagazes, percebem sinais mais rápidos que nós, e parecem menos tolerantes a sinais de narcisismo, agressividade ou machismo, por exemplo. Que bom. Esses são traços que afastam qualquer um, se evidentes. Quem saca um pouco melhor o outro no início dos contatos evita aprofundar relações que causarão sofrimento e desequilíbrio à vida. Tudo parte daquilo que é muito central nas nossas vidas. Não aceitar o que é demais para si, pois do contrário a infelicidade é certa, e nada vale a violência de uma vida infeliz. Sejamos leves e felizes, sozinhos ou acompanhados.
Algumas pessoas têm medo de amar. Elas guardam conflitos internos que nada têm a ver conosco e fica enrolando para assumir o que quer. Melhor mandar a pessoa ir resolver isso e se quiser um dia voltar e ainda estivermos disponíveis, quem sabe? Só rola se for pra ser e só dura o tempo que tiver de durar. O que o outro faz não é do meu controle, mas o que o que eu faço sim. Independente das questões que fazem o outro ser distante, egoísta, não assumir a relação ou assumir e deixar o outro infeliz, avaliar o seguinte: como eu me sinto em relação a isso? Como me sinto em relação a como o outro me trata, se vai ou se permanece? Como estão minhas emoções e os sinais do meu corpo? Estou chorando muito? Tenho calado por medo da agressividade alheia? Estou dormindo mal? Era feliz e agora ando triste? Estava equilibrada e desequilibrei-me pelo outro? É preciso cuidado. O corpo é o lado de fora dos sentimentos.
E se algumas pessoas têm medo de amar, outras não estão prontas para receber amor. Foram tão feridas e feriram tanto que só sabem ferir. Vivem na procura, ou se estão juntas a alguém vivem no limite, bombas-relógio a apontar as faltas do mundo e do outro. São inconstantes e desequilibram-se até em situações públicas. Em verdade, não percebem a facilidade que têm para apontar incoerências alheias, mas não enxergam as próprias. Estranham a paz, embora reclamem-na dia e noite. Contraditório? Não. Simplesmente humano. Medo? Imaturidade? Insegurança? Trauma? Não interessa.
Se algum tipo de relação iniciou, mesmo sem definição, talvez seja a hora de perguntar: Você vivia bem e ficou mal? Você era leve e ficou pesada? Afastou-se de pessoas que amava e sente saudades delas? Descompensou-se emocional e financeiramente a reboque do outro? Voltou a ter doenças do passado? A forma de tratar do outro te deixa mal, triste ou acuada? Você passou a viver com medo? Passou a se sentir insegura e desvalorizada depois de críticas cotidianas e agressões veladas? Sente que está invisível na relação e nada do que faça ou dê será visto pelo outro? Se a resposta a todas essas perguntas levarem ao mal estar e à infelicidade, é hora de parar, não vale insistir. Ninguém precisa disso. Ninguém merece isso. Se alguém sente que não está sendo correspondido como julga merecer e a dor prevalecer, talvez esteja vivendo uma relação indigna ou abusiva. Há uma delicada balança imaginária que ajuda a perceber se uma relação é equilibrada. O que damos deve estar próximo do que recebemos. Relações não costumam durar se esta balança vive desregulada.
Mas há um amor muito caro que costumamos esquecer, verdadeiro crime, o caduco amor próprio. Não existe isso de alguém não viver sem alguém. A gente não vive sem a gente, isso sim. Um erro comum das pessoas é acreditar que existe alguém que trará a felicidade. Isso simplesmente não existe! Cada um é o responsável por sua própria felicidade. Quando a pessoa busca se conhecer e evoluir, se aceitar e se amar, consegue ser feliz sozinha. Assim vai ser capaz de aceitar, respeitar e amar o outro como ele é, se valer a pena e houver reciprocidade, pra compartilhar momentos felizes e tristes, não esquecendo do afeto e construindo sonhos juntos.
Imagino casamento enquanto desafio, como diversos outros na vida. Se é bom ou ruim depende de como cada um é, do que cada um quer para sua vida e como aceita e trata o outro. Eu não casei e sou feliz assim. Quero casar, mas não tenho pressa – aliás, não tenho pressa para nada na vida. A lentidão é uma boa companheira. Acho que minha vida é bonita, sou feliz na maior parte do tempo, sei do que sou e mereço, mas mantenho os pés firmes no chão e a mente atenta para o que vem a mim, mulher livre e possivelmente bem resolvida numa sociedade que tenta conter os espíritos femininos independentes. Já tentei me “encaixar” por um tempo, hoje sigo na minha essência. Tudo o que vivi valeu, e como valeu! Não seria o que sou sem os aprendizados que todas as pessoas que cruzaram meu caminho trouxeram, amizades e amores, para o bem e para o mal. Amei e fui amada, cuidei e fui cuidada, machuquei e fui machucada, aqui faço a mea-culpa necessária. O que mais importa é que tudo mudou minha forma de ver a mim e de me ver no mundo. Agradeço por isso. Eu escolhi ser feliz. Pode não parecer, mas isso pode ser uma resolução. No meu caso foi. Minha vida tem muito sentido para mim. É imperfeita, claro, mas definitivamente bela. Como aquele jardim botânico no fulgor da primavera.
Quanto aos “contatinhos” que reapareceram, quem sabe algum não fique depois disso tudo? Pessoas podem surpreender. Nunca saberemos ao certo os que nos acompanharão por mais tempo na vida. Expectativas são criações nossas, nada vem do outro. Há uma história de que Rita Lee e Elis Regina não se davam muito bem. Sempre que encontravam-se nos festivais de música não se falavam. Quando Rita Lee foi presa em 1976, acusada de porte de maconha (fato que ela nega até hoje), estava grávida. Quem foi a primeira e a única pessoa a ir visita-la na cadeia? Elis Regina. Qual é o nome da filha de Elis? Maria Rita. Era assim que Elis tratava a Rita. Elis, conta Rita, usou de todo o seu prestígio para entrar na delegacia e exigir que Rita Lee fosse trazida até ela, pois não a deixaram entrar na carceragem, por ela estar com seu filho mais velho, João Marcelo. Ameaçou chamar toda a imprensa caso a cantora não fosse solta. Rita Lee se diz agradecida até hoje à atitude da colega, que a amparou inclusive depois que ela deixou a cadeia, sem dinheiro e trabalho. Depois disso elas se tornaram grandes amigas. Rita contou que as duas nunca tinham tido contato antes disso. As pessoas que a gente espera ter por perto quando precisar podem não aparecer. A vida é um grande sertão cheio de veredas e mistérios, já disse o romancista. Só que o contrário também pode acontecer, pessoas podem surpreender de forma positiva.