Por Nara Rúbia Ribeiro
Toda e qualquer violência praticada contra um ser humano é um ato reprovável. Mas não é só o corpo que se pode violentar. Afinal, o homem não é só a matéria corpórea que veste. É o infinito de suas abstrações. Assim, podemos violentar o pensamento do outro. A vontade do outro. A sua liberdade. A sua fé. Por isso, digo acerca do atentado terrorista que ceifou a vida dos colunistas da Revista Charlie Hebdo, na França, primeiro que sou Charlie, posto que qualquer violência praticada contra um humano é uma violência a toda a Humanidade. Mas observando o comportamento editorial da Revista vitimada, afirmo: Eu sou Chalie, mas não muito.
É preciso, no exercício da alteridade, se colocar também no lugar de pessoas de diversos credos que se ofendiam cotidianamente com charges grotescas dessa revista. Não há democracia sem liberdade de expressão, mas nunca devemos nos esquecer de que nossas expressões são livres para edificar e consolar, informar e instruir. As asas dessa liberdade têm espaço delimitado de voo, pois várias outras liberdades devem com ela conviver, harmonicamente. Incluindo, aqui, a liberdade religiosa.
O que a Charlie promoveu, durante anos, foi uma discriminação mascarada de humor. Foi o achincalhamento, a zombaria, a desonra de povos inteiros e de seus valores.
Vindos, em sua grande maioria, das ex colônias francesas, mais de 6 milhões de muçulmanos residem na França. Estes sempre foram inseridos na sociedade francesas como se fossem de “uma segunda classe”: pobres, vítimas de preconceitos, hostilizados por sua crença. Mas, como tudo pode piorar, a Revista Charlie
tratou de cuidar disso. Criando dezenas de charges ofensivas contra o Islã, a Charlie acentuou o preconceito e ainda profanou preceitos sagrados daquela religião. O povo islâmico era sempre retratado como idiotas armados em prontidão para matar e explodir, e Maomé, que para essa crença não pode ser de modo algum retratado, era objeto de escárnio, em charges de extremado mau gosto.
Penso que os homens, por conveniência, só sabem individualizar o humano quando se esquece do coletivo, na busca do que é seu. Quando se trata do outro, nós o massificamos. Pertencem a categorias rotuladas, e, para a Revista vitimada, esses rótulos eram escritos em letras garrafais, com tinta luminosa. Para eles, judeus, cristãos, muçulmanos, o exercício dessas crenças, é algo que faz o crente um humano menor, indigno de respeito.
Em todos os credos, em todas as religiões, há pessoas de diferentes níveis de evolução moral, mental e espiritual. Nivelar a todos, é falta de inteligência do avaliador. Nivelar ao patamar do mais raso dos indivíduos, é vilania. Não raro, era esse o trabalho da Charlie.
Ainda me lembro do quanto me entristeceu ver uma charge dessa Revista onde a trindade católica era retratada na prática de uma orgia, quando, em ato sexual, os seus três elementos se penetravam. Entristece-me essa maldade de querer destruir algo que, para dado povo, é santo e perfeito. A que serve isso?
Sempre digo que tolero quase tudo. Só me falta aprender a tolerar sem dor o convívio com os intolerantes. Eles existem em todas as crenças, mas não se restringem a elas. Intolerantes são também aqueles que, intelectualizados, se acham acima de dogmas e preceitos alheios, mas que querem impor a sua própria visão de mundo, não raro, pela força, criando, assim, o seu próprio séquito.
O que fizemos aqui foi um exercício que, para os criminalistas, é chamado de vitimologia. Analisando o comportamento da vítima e as suas implicações para a ocorrência do fato criminoso. Isso, contudo, não isenta o algoz de sua culpa. O terrorismo é uma das mazelas mais profundas do mundo. Coloca em xeque os bens mais valiosos da sociedade e, não raro, os seus agentes o fazem em nome de Deus
Por tudo isso eu sou Charlie, posto que qualquer violência praticada contra um humano também me fere. Mas também sou as milhares de pessoas a quem a Revista ofendeu, prejudicou, humilhou e fez acentuar o preconceito que já sofriam. E sabedora de que ainda teremos desdobramentos desse triste incidente, espero que aprendamos a lição de respeitar a vida de cada indivíduo, em sua ímpar dimensão existencial, e que as liberdades tenham asas, mas que voem sem zombarias, sem humilhações, e sem rótulos.
Para complementar o raciocínio do texto acima, “Somos os infernos dos outros?” – Leandro Karnal
Escritora, advogada e professora universitária.
Administradora da página oficial do escritor moçambicano Mia Couto.
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Mia Couto oficial
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