Me lembro como se fosse hoje dos sermões intermináveis da minha mãe. Algumas vezes cheguei a pensar que ela era mesmo um talento desperdiçado; podia ter sido uma locutora de rádio de sucesso; ou, quem sabe, ter ficado rica igual ao Silvio Santos; ou – e por que não -, ter virado uma dessas pastoras dessas igrejas que têm até rede de televisão.
Mas, não! Ela resolvia exercitar toda a sua habilidade de oratória de disco de vinil riscado em cima da gente. É verdade que a minha irmã do meio recebia muito mais atenção neste quesito, porque ela aprontava sozinha muito mais do que eu e a minha irmã mais velha juntas. Entretanto, o arsenal de ensinamentos era tão vasto que sobrava para todo mundo; até para o meu pai e uma tia solteira e bem velhinha que morava com a gente. Minha avó materna também morava com a gente, mas com essa aí minha mãe não se metia não, porque a velhinha era uma fera e a ÚNICA pessoa nesse mundo a botar minha mãe na linha.
Para nós, a minha Vó Nenê era “tipo Deus”, porque quem além Dele seria capaz de amansar a minha mãe? E deve ser por isso que eu cresci com firme propósito de NUNCA perguntar a Deus “O que foi que eu fiz de errado?”. Vai que ele resolve responder… Eu, hein! Melhor não arriscar.
Muita gente pode não saber, mas num período longínquo da nossa história… lá pelos idos de 1970 havia modalidades de meliantes que foram se especializando com o tempo – eram os “batedores de carteira”; esses caras tinham dedos muito leves, tão leves que eram capazes de subtrair carteiras de dentro do bolso de alguns desavisados, sem que os desavisados sequer sentissem o mais leve roçar de mãos em suas nádegas – coisa de especialista mesmo! Hoje em dia, o alvo são os celulares, que naquela época não existiam nem em filme de ficção.
Um dia, minha mãe saiu de casa para ir à feira – e isso acontecia toda sexta-feira, religiosamente. Dona Daisy saía de casa – nós morávamos no Edifício Copan, no centro da cidade de São Paulo, onde meu pai era zelador -, e ia a pé mesmo até a feira da Rua Sergipe, ao lado do Cemitério da Consolação. Naquela sexta-feira, em especial caía uma chuvinha fina e chata (aquela garoa que tinha em São Paulo da garoa, São Paulo que terra boa, ê ê ê ê São Paulo… lembra?!). Então… garoava na terra da garoa, era mês de fevereiro e eu, que estava de férias, fui escalada para acompanhar a Dona Daisy à feira para ajudar a carregar o guarda-chuva, as sacolas de verduras e o carrinho de frutas.
E lá fomos nós para as aventuras de “Olha o abacaxi, doce feito mel, freguesa!”; “Moça bonita não paga, mas também não leva!”; “Nossa Senhora, mas essa é a sogra que eu pedi a Deus!”; “Olha a fruta diet e light, não engorda e ainda afina a cintura!”; “Hoje tem tomate a preço de banana! Chega aí freguesia!”; “Quem não pediu ainda, pida!”. Foi nesse dia fatídico que eu descobri duas outras habilidades da minha mãe, além do dom da oratória: uma foi a de NUNCA pagar o primeiro valor pedido pelo produto. Na terceira barraca eu já estava querendo me enfiar dentro da próxima melancia e desaparecer. Deve ser por isso que eu não consigo pechinchar preço; aquela experiência deve ter me causado um trauma infantil.
A segunda habilidade que eu descobri no comportamento da Dona Daisy deixaria o Chuck Norris, o Stallone e o Scwarzenegger com inveja! Foi assim… Havíamos acabado as compras, estávamos com as sacolas e o carrinho lotados de mamões, chicórias, batatas, repolhos, mangas, laranjas, alfaces, brócolis… e tals. Com muito sacrifício eu havia convencido a minha mãe a comprar um pastel de queijo pra mim; afinal eu não deixei de reparar que tinha uns garotos que, para ajudar a carregar a sacola, cobravam o equivalente a um pastel de feira; logo, nada mais justo, certo?
Tinha parado de chover, portanto minha mãe naquele momento carregava a sombrinha enrolada e fechada debaixo do braço. Ela me deu o troco para comprar o pastel de queijo e ficou ali perto me esperando, sombrinha debaixo de um braço, duas sacolas aos seus pés no chão e mais o carrinho cheio ao seu lado.
Eu já ia voltando para perto da minha “doce progenitora”, muito focada no meu delicioso pastel, quando ouvi, os gritos furiosos da Dona Daisy. Ao nosso redor, a feira era só silêncio. Os feirantes pararam de gritar suas ofertas e as outras donas de casa e os outros seres estranhos que ali estavam, já iam formando uma roda em torno da minha mãe.
Virgimaria! Um batedor de carteira, tinha tentado surrupiar a carteira da minha mãe. Coitado!!! O moleque tomou uma surra de guarda-chuva, acompanhada de um dos mais eloquentes sermões que eu já tinha escutado sair daquela santa boquinha: “Ahhhhh pirralho sem vergonha! Tu não tem mãe, não, é seu desgraçado duma figa! Moleque sem educação! Onde já se viu querer roubar uma mãe de família! Desclassificado!” – e tome guarda-chuvada!
Para piorar, na hora daquele “vucovuco” algumas iguarias como limões e cebolas acabaram rolando pela calçada. No fim minha mãe acabou fazendo o moleque catar as coisas do chão, sem interromper o rosário de impropérios acerca do comportamento criminoso do meliante.
E o moleque catava as coisas e murmurava “Desculpa, Dona!”; “Chega, Dona!”; “Para, Dona!”; “Por favor, Dona!”.
Passada a ira, minha mãe se deu conta da plateia à sua volta e não se fez de rogada: “QUE, QUE É! NUNCA VIRAM UMA DONA DE CASA EDUCAR BANDIDO, NÃO? VÃO ARRUMAR O QUE FAZER!”.
É meu amigo, você não sabe a fera que era a Dona Daisy!
Dissipada a multidão. Meu pastel a essas alturas já tinha esfriado, o queijo já nem fazia aquele show de esticar para fora da massa… minha mãe amansou a fala com o moleque: “Tava roubando por quê, criatura?”; e o garoto, entre uma fungada e outra, respondeu: “Eu tava com fome, Dona!”.
Foi aí que eu vi uma coisa rara de acontecer, um olhar de arrependimento passou por uma fração de segundos no rosto da minha mãe; mas foi muito, muito, rápido. No entanto, o suficiente para que eu reconhecesse ali, atrás daquela fachada de braveza explícita, uma versão bruta e original de amor maternal.
Dona Daisy engoliu em seco, se virou para mim e disse: “Toma aqui mais um dinheiro e vai comprar um pastel e um caldo de cana pro menino. Vê aí do que é que ele quer!”.