Isso mesmo. Cuidar, tomar conta, arcar com as consequências, fazer acontecer. Encarregar-se. É disso que o mundo precisa: gente capaz de se responsabilizar por si mesma, de bancar a própria conta, assumir a própria vida em vez de abraçar o que não pode e atrapalhar mais do que acudir.
A amiga me perdoe, o amigo me desculpe, mas tem gente demais achando que vai dar jeito nas questões políticas, no problema ecológico, na camada de ozônio, na violência urbana e em toda aflição do nosso tempo sem antes resolver suas pelejas pessoais.
Não é egoísmo. Não é, não. É o mínimo de senso prático. Quem não dá jeito na própria vida não pode ajeitar a dos outros. Faz mal! Uma existência bagunçada não pode organizar nenhuma outra. Primeiro a gente arruma a nossa casa. Conserta os vazamentos, troca as lâmpadas queimadas, esfrega o chão encardido, descongela a geladeira, manda fora o que já não vale, lava, enxuga e guarda a louça, depois recebe quem quiser e puder.
Uma coisa é contribuir com a campanha do agasalho, doar o que lhe sobra, assinar uma rifa aqui e ali, fazer o que pode dessas coisas boas que deixam o dia e a consciência mais leves. Outra bem diferente é ignorar as próprias mazelas, fingir que elas não existem e embarcar na ilusão ou na mentira de que podemos esquecer nosso quintal e dar jeito no mundo. Tá aí um enorme e escandaloso equívoco.
Não é possível deixar nosso problema trancado em casa e correr para a rua decididos a resolver o aperto alheio. Nossos impasses não ficam em casa. Eles fogem e nos perseguem. Arrombam a porta, escapam pelos vãos, passam por debaixo do portão e vêm junto. No fim, de algum jeito levamos para o outro mais um inconveniente. O nosso.
Protelados, nossos abacaxis florescem em hortas infinitas dentro de nós. Multiplicam-se em pomares robustos, brigando por pedaços de terra com caquis que amarram na boca e limões azedos, rodeados por cercas enormes, tomadas de pepinos e abobrinhas de todas as classes. Não se pode lhes dar as costas, não se deve oferecê-los às visitas nem muito menos passá-los adiante para que os outros os descasquem por nós ou, quem sabe, nos ajudem a esquecê-los até que eles apodreçam ou explodam na próxima hecatombe.
É preciso cuidar da terra, machucar as mãos na enxada, carpir o mato, podar os galhos, mandar os abacaxis, caquis, limões, pepinos, abobrinhas e afins a destino certo. Antes de tratar do outro é melhor dar um jeito em nossas próprias questões.
No mau sentido, cuidar da vida alheia é um péssimo hábito. Perseguir os passos do outro, julgar, desdenhar, invejar suas conquistas sempre serão gestos horríveis. Já no bom sentido, cuidar do outro carece primeiro estar em condições de fazê-lo.
Quem não sabe nadar não pode pular na água e socorrer alguém que se afoga. É melhor correr e chamar um salva-vidas. Desprezar essa regra nunca vai dar em boa coisa, mesmo com toda a boa intenção do mundo. Porque você sabe: de boa intenção o inferno sempre foi cheio.
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