Falsas memórias: como convencer alguém de um crime

Por Igor Leone

Um levantamento realizado nos Estados Unidos com 300 casos de presos que foram inocentados através de exames de DNA após anos na cadeia, revelou que em três quartos dos casos as acusações foram baseadas em falsas memórias dos envolvidos e falsas memórias das testemunhas oculares. Outra pesquisa publicada na Revista Psychological Science, feita com voluntários, comprovou que é possível convencer uma pessoa, ao longo de algumas horas, de que ela cometeu um crime na adolescência. Os cientistas foram capazes, inclusive, de fazer o voluntário internalizar as falsas memórias e contá-las novamente com descrições ricas de eventos que nunca ocorreram. 

Hoje em dia sabemos que é relativamente fácil gerar memórias falsas e inclusive embutir nelas a mesma complexidade de detalhes de uma memória real. A maioria de nós acredita que a memória funciona como um gravador, quando na verdade elas são constantemente construídas e reconstruídas, como uma página do Wikipedia – você pode acessar sua memória e mudar alguns fatos, mas lembre-se, outras pessoas também podem.

Estamos aprendendo que a memória é mais como um streaming em tempo real do que uma gravação de vídeo, continuamente editada por nossas percepções, imaginação, experiências e uma infinidade de outros fatores. Ainda assim, não é um costume dos juízes e jurados questionarem a autenticidade das memórias e faltam peritos que diferenciem uma memória autêntica de uma falsa memória.

O resultado disso é que pessoas inocentes vão para a cadeia todos os anos com base em testemunhas que relatam eventos de forma completamente distorcida. Na verdade, o simples comentário de um policial quando uma testemunha descreve um suspeito, algo como “bom trabalho, sua descrição corresponde a pessoa que procurávamos” já pode criar um feedback de confirmação e fazer a pessoa acreditar excessivamente no que está relatando, ainda que não se lembre direito ou não tenha certeza.

Experimento 1: “Me engana que eu gosto”

Um dos experimentos para comprovar a falsa memória ocorreu em escolas do Canadá, onde cientistas pediam aos professores para que preenchessem questionários a respeito de eventos específicos que os alunos poderiam ter experimentado entre os 11 e os 14 anos. Em seguida, os alunos passavam por três entrevistas de 40 minutos, com um intervalo de uma semana entre cada uma delas.

Durante a primeira entrevista, o pesquisador contava a respeito de dois eventos que o aluno havia experimentado quando era mais jovem; no entanto, apenas um desses eventos de fato ocorreu. Para alguns, o falso evento era um crime que acabou resultando em uma detenção (furto, porte de armas, por exemplo). Para outros, o falso evento envolvia algo mais emocional, como uma briga, perda de dinheiro ou até mesmo o ataque de um cão.

Os participantes eram convidados a contarem suas memórias, tanto no evento verdadeiro quanto no falso, e por mais que não se lembrassem (obviamente) eram encorajados a lembrar da história usando estratégias específicas de recordação de memórias. A segunda e terceira entrevistas consistiam em continuar descrevendo os dois eventos, falso e verdadeiro.

Por incrível que pareça, dos 30 participantes que foram informados que cometeram um crime quando eram adolescentes, 21 (71%) desenvolveram uma falsa memória e foram capazes de contar o evento de fora detalhada, incluindo questões processuais.

76% dos participantes também recordaram das falsas memórias emocionais. É interessante notar que a porcentagem de pessoas que recordou a participação em um crime é tão alta quanto as que recordaram um evento emocional. Os participantes, nos dois casos, tendem a fornecer o mesma quantidade de detalhes e relatam o mesmo nível de confiança e vivacidade das histórias.

Para os psicólogos que desenvolveram o estudo, alguns dados fornecidos pelos professores (como o nome do melhor amigo do participante) foram fatores decisivos para encorajar a criação da falsa memória e da familiaridade com um evento que possa ser plausível.

Os resultados têm implicações claras no que se refere aos interrogatórios policiais e outros procedimentos jurídicos.

Experimento 2: “Foi você, eu vi”

Outras pesquisas revelaram dados semelhantes: a implementação de uma memória falsa tem mais probabilidades de ocorrer quando um amigo ou um familiar afirmam que o suposto evento aconteceu. A corroboração de outra pessoa é decisiva durante esse processo, onde a simples alegação de que ela viu você fazendo determinado ato já é suficiente para que você acredite e confesse.

Nesse experimento os cientistas estudaram a reação de pessoas ao serem acusadas de terem quebrado um computador pelo simples fato de digitarem a tecla errada. Os participantes a princípio negavam que o teriam quebrado, mas quando outro indivíduo (um ator) afirmava que viu a tecla sendo pressionada, o participante reconhecia o erro, assinava uma confissão, internalizava a culpa e relembrava o momento com detalhes.

Ficou comprovado que a falsa acusação pode induzir as pessoas a aceitarem a culpa sobre determinado ato e até mesmo desenvolverem falsas memórias sobre ele. A pesquisa mostrou como as falsas memórias são complexas, emotivas e podem ser construídas com sugestões de terceiros.

Exemplos reais

Nessa palestra, a psicóloga Elizabeth Loftus apresenta seus estudos sobre falsas memórias e casos reais em que acusados recordavam eventos que não ocorreram e testemunhas que relatavam histórias de forma completamente distorcida. Vale a pena conferir!

Essa matéria foi publicada com autorização de nossa página parceira:

Igor Leone é advogado, sócio do escritório Tardelli, Zanardo e Leone Advogados, colunista e diretor executivo do Justificando.

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