Por Paulo Silas
Era uma manhã gelada quando o escritor Rubem Alves partiu para o Centro Médico de Campinas com destino à Avenida da Saudade 1.004, a câmara do município. Isso foi há exato um ano. O endereço não necessariamente era o da sua casa – talvez, fosse do povo. O plenário da Câmara, entretanto, se tornou a sua sala, recebeu os amigos, parentes e outras pessoas que o admiravam. Lá, foram ditas – reservadamente aos mais íntimos – suas últimas palavras, cravadas em uma carta. Logo depois, em 14 de setembro, suas cinzas foram carregadas até um jardim. Um lindo ipê amarelo as acolheu.
Apresento a você, leitor – com a devida autorização – um texto inédito da filha de Rubem, Raquel Alves, escrito ao fim daquele 14 de setembro, data em que família e amigos do escritor se reuniram para celebrar a vida:
“E ele ficou encantado
Ele sempre contou – e gostava de falar isso – que tinha conquistado tudo o que conquistou e tinha se tornado o que se tornou porque tudo o que havia planejado para a sua vida deu errado. Se tivesse dado certo, teríamos nos despedido de um clérigo ou de um pianista. Mas com a morte não assim. Tudo saiu de acordo como ele sempre sonhara.
No dia e local combinados, estávamos todos lá. Só os mais queridos. Família e amigos, aqueles que valem como irmãos, companheiros de uma vida toda. Não para chorar a despedida, mas para celebrar a vida. A seleção de poesias para serem lidas estava feita, de acordo com o gosto dele. Ivan Vilela chegou com sua viola para que a poesia não fosse só lida mas também ouvida. A cova e muda do ipê amarelo nos aguardavam. E a caixa de mogno que guardava as cinzas, sobre a mesinha, ensaiava um leve ar de solenidade interrompida pelo barulho das folhas das árvores e o crepitar do mato seco sob nossos passos.
Era a primeira vez que estávamos sem o nosso mestre de cerimônias. Quem iria ler o quê? Quem começaria? Fizemos um trato enquanto ensaiávamos interromper aquele silêncio desconfortável de quem aguarda não se sabe o quê, um sabiá decidido anunciou em alto e bom tom que era hora de começar. Ivan nos deliciou com sua viola e, em seguida, meu irmão começou a ler “Vou plantar uma árvore”, autoria de nosso pai. Começaram a preparar a muda para ser plantada e tiraram de dentro da caixa um saco transparente com cinzas. Eu assistia à cena e me indagava em silêncio como seria que as espalharíamos… Ainda não havia entendido se eram sagradas demais para serem tocadas ou não.
Buraco aberto, muda no lugar, Sérgio com sua decisão de primogênito enfiou a mão no saco e começou a adubar a muda com aquilo que algum dia tinha dado vida ao meu pai. Não, não tinha como ser fúnebre aquilo tudo. Era pura poesia e encantamento. Estávamos celebrando a vida e o amor, plantando a esperança de continuarmos num mundo bonito. Em seguida, Marcos, eu e quem quisesse realizar o desejo de Rubem Alves.
Terminando o plantio do ipê amarelo, entendi na carne a grandiosidade da simplicidade. Não haveria nada mais simbólico e supremo que plantar uma arvora para celebrar a vida, sem nenhuma palavra rebuscada, apenas aquilo que nos tocava a alma. Ao tocarmos as cinzas, deixamos de lado toda a nossa vaidade e todo o nosso orgulho, despimo-nos do que nos é desnecessário para encarar frente a frente, ali nas nossas próprias mãos, a efemeridade da vida.Um dia a morte nos tocará também e cabe a nós decidirmos se queremos ser árvores ou lajes de concreto. Vai da alma de cada um.
Entre sorrisos e emoção lemos a Cecília Meireles, o Fernando Pessoa e o Vinícius de Moraes. Até mesmo não estando mais entre nós, ensinou-nos a beleza da vida. Tempus Fugit; Carpe Diem. Amém.”
Artigo publicado no Jornal de Limeira, no dia 19 de julho de 2015 e foi aqui reproduzido com o consentimento do repórter Paulo Silas, a quem agradecemos.