Poluição, super urbanização, guerras civis, doenças, caos. Esse conjunto de elementos forma uma ótima ficção e ela nos é dada através do filme “Filhos da Esperança” (The Children of Man), do diretor argentino Alfonso Cuarón. No entanto, esses elementos também são encontrados na vida real e, assim, o ditado que diz que a arte imita a vida parece ser perfeita nesse caso.
As obras de ficção científica, sobretudo distopias, costumam apresentar previsões que assustadoramente se confirmam e com Filhos da Esperança não é diferente. A história se passa em 2027, em um mundo caótico, cheio de guerras, doenças e poluição, em que o governo britânico é o único que se mantém de pé. Nesse futuro, inexplicavelmente, a humanidade se tornou infértil há 18 anos, instalando o medo e o caos sob uma sociedade sem perspectiva.
Como dito, o único governo que se mantém ativo é o britânico, porém, ele é exercido de forma autoritária e violenta, sobretudo em função de ataques terroristas e dos refugiados que tentam entrar no país. Diante desse cenário perturbador, que é realçado brilhantemente pelas lentes de Emannuel Lubezki, surge Theo (Clive Owen), um homem sem fé na humanidade, perturbado por acontecimentos do passado, que vive sem ânimo e procura refúgio no álcool.
A vida de Theo muda quando ele é contactado por Julian (Julianne Moore), líder de um movimento contra o governo, para proteger uma garota grávida, levando-a para um local seguro, onde possa ter seu filho sem a intervenção do governo e outras entidades que possam se aproveitar da situação. Essa missão soa de forma estranha, afinal, a criança deveria ser reverenciada, todavia, a questão reside no fato de a mãe não ser inglesa, mas sim uma refugiada, e aqui reside o mote central da história.
No filme, as pessoas que não são inglesas, isto é, estrangeiros que fogem de guerras em seus locais de origem, são tratadas de forma humilhante e degradante, enjauladas literalmente e transferidas para campos de refugiados. Sob a vigilância constante da polícia, os ingleses, considerados pessoas úteis, são bombardeados com mensagens que incentivam a denúncia dos imigrantes ilegais, a fim de “proteger” a Inglaterra.
O que acontece no longa aproxima-se muito com a crise dos refugiados que atravessamos. Tendo suas vidas destruídas por guerras, pelo terror e pela “Guerra ao Terror”, milhares de pessoas são expulsas de seus países e obrigadas a buscar guarida em outros locais distantes do seu povo, da sua língua, dos seus costumes e de qualquer coisa que traga a noção de que pertencem a algum lugar. Tanto aqui, quanto no filme, essas pessoas são barradas e jogadas em zonas, em que sequer têm um nome; são apenas “refugiados” vivendo por sua sorte, uma vez que não são considerados como pessoas úteis ou recicláveis.
Essa conclusão é observada nos pensamentos de Zygmunt Bauman, o qual entende que essas pessoas são tratadas como o “lixo humano” que precisa ser descartado, já que não há onde jogá-lo, bem como não há vontade em reciclá-lo. Ou seja:
“A caminho dos campos, os futuros moradores são despidos de todos os elementos de suas identidades, menos um: o de refugiado sem Estado, sem lugar, sem função e ‘sem documentos’. Do lado de dentro das cercas do campo, são reduzidos a uma massa sem rosto, sendo-lhes negado o acesso a confortos elementares que compõem suas identidades e dos fios usuais de que estas são tecidas.”
As palavras duras de Bauman, do mesmo modo que as imagens do filme, podem chocar, mas, se analisarmos de forma crítica, perceberemos que as colocações são pontuais. Vivendo segundo os ditames do capitalismo selvagem, não nos preocupamos com a saúde do planeta, tampouco com a nossa. Dizem que vivemos em um mundo globalizado, mas as grandes potências não estão preocupadas com as crianças que morrem todo dia, na Síria, e sim em poderem explorar mais o terceiro mundo, com a sua versão hi-tech do fardo do homem branco.
Enquanto se precisa diminuir a poluição, só nos preocupamos em criar novas formas de sujar o planeta. Enquanto o mundo explode em guerras civis, dissemina-se mais ódio – e advinha por quem? Pelos mesmos países que, no século XIX, dividiram as nações que hoje sofrem, como se estivessem em uma pizzaria, desrespeitando limites étnicos, culturais e geográficos. E o que eles queriam? Expandir seus mercados, tornar o mundo globalizado ou, como diziam os romanos, salvar os bárbaros da ignorância.
A grande questão é que esse modus operandi trouxe problemas, os quais nós vemos hoje e, mesmo que maximizados, também aparecem no filme. Há a necessidade, então, de separar o joio do trigo, os humanos úteis dos inúteis, os que merecem ser tratados como humanos dos que devem ser tratados como trapos vagabundos. Os “fúgis” do filme são tratados como o joio, vivendo atrás de muros, sob a vigília de armas de fogo, bem como acontece debaixo dos nossos olhos diariamente, ainda que só enxerguemos quando aparece uma criança morta na praia.
“Nada resta senão os muros, o arame farpado, os portões controlados, os guardas armados. Entre si, eles definem a identidade do refugiado – ou melhor, eliminam o seu direito de autodefinição, que dirá de autoafirmação. Todo refugo, incluindo o lixo humano, tende a ser depositado indiscriminadamente no mesmo local. Essa destinação do lixo põe fim a diferenças, individualidades e idiossincrasias. Lixo não precisa de distinções finas ou nuances sutis, a menos que seja destinado à reciclagem. Mas as expectativas dos refugiados de serem reciclados em membros legítimos e reconhecidos da sociedade humana são, para dizer o mínimo, diminutas e infinitamente remotas.”
Desenvolvemos um estilo de vida degradante, tanto para o planeta, quanto para nós. Marcados por individualismo, só nos preocupamos com o nosso umbigo, assim como enxergamos o mundo tão somente como uma grande maçã, fonte do nosso apetite. Vivemos sob a égide de uma liberdade falsa e de uma globalização perversa, em que as grandes potências buscam modos de explorar o eterno novo mundo, em guerras marcadas pelo vermelho do sangue, pelo negro do petróleo e pelo verde do poder. E eis que olhamos para o mundo e enxergamos poluição, proliferação de doenças, caos urbano, violência e guerras – então, nós nos perguntamos o porquê. No filme, também não existem respostas fáceis. Mas elas estão lá, nas entrelinhas, e são as mesmas que respondem às nossas questões mundanas.
Enquanto não estivermos preocupados em encontrar essas respostas, mais guerras explodirão, mais caos existirá e mais refugiados baterão às portas das grandes potências que um dia foram aos seus países levar a “colonização”. E, com um mundo cheio e doente, é preciso, nas palavras do próprio Bauman, “remover o nocivo lixo humano” e produzir uma “faxina étnica”, já que as fronteiras estão fechadas para os que anseiam por pão e abrigo, a não ser que seja para fazer o trabalho sujo, como serem empregados em fábricas em condições escravas.
Filhos da Esperança é um filme triste e pesado e, por isso, é tão próximo da nossa realidade, já que, quando desenvolvemos um estilo de vida que coisifica o ser humano e reduz milhares de pessoas a lixo, a sociedade realmente se tornou infértil de compaixão – e, disso à realidade descrita no filme, talvez leve menos do que 11 anos.
“É estranho o que acontece no mundo sem a voz das crianças.”
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