Nasci de uma mãe, mas meu primeiro abraço foi em outra. Assim que recebi a vida, meus pais receberam a ligação de que eu estava ali, viva, esperando pra conhecer minha casa. Meu consciente não se lembra de nada, mas se fecho os olhos consigo ver minha mãe e meu pai me levando recém-nascida pro nosso lar.

Os primeiros dias foram difíceis. As sequelas de uma gravidez sem cuidados apareceram nos meus pulmões, e com poucos meses tive pneumonia e fui morar numa UTI. Papai e mamãe ficaram lá, me amando e orando para que eu ficasse bem, e eu fiquei. A asma ainda vive comigo, mas é contornável. Uma lembrança diária de minha origem e uma gratidão também diária de ter tido pais que nunca desistiram de mim e da minha saúde.

Dois anos depois, veio meu irmão. Mesmo caso, mas as sequelas dele foram diferentes das minhas. Ele teve meningite quando bebê, e o sábio Dr Drauzio Varella, que na época atendia no Servidor Público de São Paulo, foi quem diagnosticou e ajudou irmãozinho a se curar, mesmo que ainda pequeno.

Crescemos com todo o amor e afeto de nossos pais. Nosso tom de pele é parecido, então ninguém nunca diria que não temos relação consanguínea. Mas papai e mamãe, sabiamente, sempre nos explicaram que éramos filhos do coração. Lembro claramente dos meus cinco ou seis anos, mamãe fazendo bolo pro café da tarde e me explicando que eu tinha vindo de outra barriga e que ela não tinha me dado o peito, mas que eu era filha de amor legítimo dela e do papai e que isso nunca iria mudar.

Com a chegada da adolescência, as perguntas começaram a latejar e eu e meu irmão reagimos de forma diferente. Todo filho adotado pensa na família biológica. Se olha no espelho e pensa se os pais de sangue tem os mesmo traços no rosto, se são ricos ou pobres, se ainda estão vivos, se existem outros irmãos. Eu e meu irmão também fizemos essas perguntas, e nossa mãe sempre respondeu que estávamos na família de nossa programação e que não deveríamos nos preocupar com os laços que já tinham se encerrado. Eu desisti dessas perguntas antes da idade adulta, mas meu irmão se calou pra sempre e eu não tenho certeza de que ele deixou essa eterna dúvida pra trás.

Mesmo que o adotado aceite bem e entenda todo o processo, as sequelas psicológicas ficam em seu subconsciente. Fica guardada uma dor da perda em alguma caixinha dentro da cabeça, uma dor que aparece quando ele vive na pele a primeira rejeição, que geralmente é associada a uma perda amorosa. A minha aconteceu quando eu tinha 16 anos.

Eu não sabia nada da vida naquela época, e a perda de um namorinho virou um tormento enorme dentro de mim. Tive depressão, fui parar na psicóloga. Falava dele, das minhas brigas com meu peso, dos problemas na escola. Gentilmente, a profissional foi introduzindo o assunto da adoção e eu fui encarando um sentimento que eu nem sabia que tinha.

Eu melhorei daquela crise, mas foram muitos anos de terapia pro meu coração aceitar que minha mãe de sangue não me rejeitou, e sim me deu a vida e me entregou para o destino que eu vim viver, com minhas realizações, perdas, ganhos e méritos.

No momento estou nos Estados Unidos, com o apoio e amor de meus pais, que nunca me abandonam nem deixam de torcer por mim, não importa a altura do meu vôo ou da minha queda. Eles estão sempre lá, cheios de orgulho e cada vez com conselhos mais preciosos para me dar. A maturidade – minha e deles – tornou nossa relação mais forte, especial e amorosa.

Aqui nos EUA a adoção parece mais comum do que no Brasil, e geralmente é interracial. Conhecendo os preconceitos enraizados deste país, sempre me pergunto se o motivo é porque eles realmente querem ajudar as crianças dos países pobres ou se eles querem que a sociedade os perdoe dos muitos pecados a partir dessa adoção “bondosa”. O motivo não me interessa, a disposição deles em dar amor e educação é que é o meu ponto de observação.

Hoje uma senhora me mostrou a foto dos dois netos. Americana descendente de europeus, me apresentou aos dois pequenos de pele negra. Disse que o menino veio da Etiópia com um ano e meio, e que a pequena veio de um orfanato com poucos dias de vida. Quando disse que também era adotada, ela se espantou: “Nossa, nunca vi uma adotada adulta”.
Meus suspiros longos já começam desse comentário. “Adotados” são humanos, e não uma espécie diferente. Comemos, trabalhamos, temos filhos, nos relacionamos… e ficamos adultos, óbvio.

Ela então continuou a narrativa dizendo que o menino agora tem doze anos e que pergunta sobre suas raízes. A mãe, então, resolveu viajar com ele para a Etiópia nas próximas férias, e a vó está receosa: “Imagina se ele pergunta sobre a família ou se quer ir atrás da mãe verdadeira, o que vamos fazer?”. Com paciência, respondi: “Senhora, dê amor e educação para seu neto, e confie na sua criação. Ele fará as escolhas dele quando for a hora”.

E ela continuou: “Mas você imagina se ele resolve abdicar da nacionalidade americana, o que pode acontecer?” E eu tentei explicar: “O preconceito é latente demais aqui. Talvez seu neto conheça outros países, como o dele, ou como o meu Brasil, onde ele poderá sentir uma liberdade que aqui não existe. Se esse for o caminho dele, você deve confiar que os cuidados de sua família irão dentro de seu coração e o ajudarão a tomar as melhores decisões”.

Ela me abraçou, me agradeceu e disse: “Seus pais devem ter muito orgulho de você”. Sorrindo, eu finalizei “Eles confiam no amor e nos conselhos que me deram e que ainda me dão diariamente. Afinal, eles são a minha verdadeira família e é isso que uma família faz”.

A adoção é o maior ato de amor que um homem pode realizar. Ao adotar, ele promete amar incondicionalmente e por toda a vida uma criaturinha que ele não sabe de onde vem e quais problemas vai desenvolver. Há quem pense que os filhos de mesmo sangue são diferentes, porque o sangue é o que os une. Não há mentira maior. O que une e cria laços é o puro e simples amor.

Vejo milhares de campanhas de adoção de bichinhos de estimação em redes sociais, com textões falando da importância de pegar um desses pequenos pra criar e blá blá blá. Já perguntei pra diversas pessoas com cães e gatos adotados se elas adotariam uma criança.

A resposta é sempre a mesma: “Jamais, filho tem que ter o mesmo sangue”. No fim, ainda me dão sermão porque eu gosto de cockers e sempre compro os meus com uma criadora. Quando eu comento que eu sou adotada e que pretendo adotar, eles sempre se espantam e desviam o assunto. Não são tão diferentes dos americanos, afinal. Não entenderam nada.

Adoção é um ato de amor genuíno, e não uma bondade que deve ser postada para ter curtidas nas fotos. Obrigada pai, mãe e irmão, por terem me ensinado sobre o amor verdadeiro e por sempre me lembrarem da importância dos valores que carregamos dentro do coração. Vocês me ajudaram – e ajudam – desde a adoção a ser uma pessoa pura e justa nesse mundo de interesses e vaidades.

Minha família me escolheu, me esperou, e me amou – e ama! Quanto filho de sangue não sabe o que isso significa…

Ana Carolina Faria Bortolo

Turismóloga e Administradora de Novos Negócios por formação. Escritora, pintora e dançarina por vocação. Planejadora de eventos, bartender, agente de viagens e vendedora por profissão. Garçonete de navio por opção. Vi o mundo e voltei, e de todos os rótulos que carrego na bagagem, só um me define bem: sou uma ótima contadora de histórias.

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Ana Carolina Faria Bortolo

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