Quando uma criança pequena brinca com aqueles jogos de encaixar, ela pode tentar colocar uma forma quadrada em um espaço redondo. E é normal, faz parte da experiência. Se ela for teimosa, ela pode continuar tentando. Com a ajuda de um martelo, de repente. E se ela for extremamente teimosa e insistir muito, ela pode tentar quebrar as pontas do quadrado pra encaixar no círculo.
Essa é a impressão que dá quando muita gente tenta usar alguma outra coisa para provar uma ideia própria. E isso pode acontecer com qualquer um, desse destino não escapa nem o pai da psicanálise, já que é a sensação que dá quando Freud analisa Shakespeare. Parece que o Sigmund se esforça para encaixar uma teoria-triangular em uma história-oval.
Hamlet sempre levanta a questão da hesitação. Muita gente que lê se pergunta: depois que ele descobre que seu tio matou seu pai, cujo fantasma pede vingança, porque ele não mata logo o tio? Tem até uma piada que diz que se o caso fosse com Macbeth, a peça já terminava no primeiro ato, sem lugar pra hesitação.
Mas Hamlet hesita. Ou talvez não hesite, talvez seja só a forma dele lidar com a situação, afinal, cada pessoa tem um tempo. E cada pessoa pode ler Hamlet de uma forma diferente, criando suas próprias teorias, o que vale pra Hamlet ou pra qualquer outro texto. Quanto mais rica a obra, maior a variedade de interpretações. E ninguém nunca vai estar certo ou errado, às vezes, nem o próprio autor.
Para Freud, a razão da hesitação de Hamlet em meter o pé na jaca da vingança é simples: Claudio, seu tio, fez o que o próprio Hamlet gostaria de ter feito em sua infância: matar seu pai e casar com a mãe. Complexo de Édipo clássico, né? Aliás, Hamlet foi mais fundamental para Freud do que Édipo Rei. Freud diz que o ódio sentido pelo tio-padrasto é “substituído por auto-recriminações, por escrúpulos de consciência, que o fazem lembrar que ele próprio, literalmente, não é melhor que o pecador que deve punir.”.
É uma teoria. Tão boa quanto qualquer outra. Mas o Sigmund levou a sério e achou que tinha decifrado o enigma, acabando com uma angústia que já durava três séculos através da teoria psicanalítica, que dava uma explicação plausível para o mistério da hesitação. Ele afirma:
“Só a partir do momento em que a origem do material da peça foi remontada pela psicanálise ao tema edipiano, o mistério de seu efeito foi por fim explicado“.
Como eu disse, é uma teoria. Se é a correta, provavelmente nem Shakespeare poderia dizer.
Mas se dissesse, Freud não acreditaria, já que ele não acreditava que o ator nascido em Stratford-upon-Avon era o autor das peças atribuídas a ele. Freud abraçou a teoria de um professor inglês chamado J. Thomas Looney. Looney, em inglês, pode ser traduzido como louco, mas Freud deixou passar a dica e acreditou em tudo o que Looney escreveu em Shakespeare Identified, se entusiasmando tanto com o livro que costumava presentear amigos com ele.
O livro defendia que Shakespeare não podia ter escrito as peças, por não ter a formação que Looney achava adequada. O verdadeiro autor seria Edward de Vere, 17º Conde de Oxford, que teria um pedigree mais de acordo com as obras. O fato de que o Edward morreu em 1604, anos antes da estreia de peças como Macbeth, Rei Lear e A Tempestade não abalou as suas convicções do autor.
Nem as de Freud. O engraçado é que antes do livro, ele chegou a tentar martelar sua teoria sobre a biografia de Shakespeare, já que o pai, John Shakespeare, morreu em 1601, ano em se acredita que Hamlet tenha sido escrito. O texto seria uma forma de lidar com as questões que voltaram à tona na vida do William a partir da perda recente. E também para lidar com a sua própria perda como pai, já que poucos anos antes, ele havia perdido um filho, com 11 anos. E qual era o nome do filho? Hamnet. Coincidência? Para Freud, não.
Harold Bloom, um dos maiores especialistas em Shakespeare, diz que Hamlet não tinha Complexo de Édipo, que talvez fosse Freud quem tivesse Complexo de Hamlet.
Complexos e teorias a parte, é bom acreditar nas ideias que temos, mas é melhor ainda quando existe espaço pra dúvida. O problema é que como vivemos em um momento de certezas absolutas, hoje em dia, o que mais tem é gente tentando colocar o círculo no quadrado. E não são crianças…
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