Jung define, em Natureza da Psique (1998), função transcendente como “união de conteúdos conscientes e inconscientes”.

Em geral, o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências. A consciência do ego sempre busca a satisfação imediata e a fuga de sua imagem idealizada, enquanto que o inconsciente busca a realização da totalidade que engloba aspectos sombrios e tem o seu tempo para realizar.

Essa oposição entre ego e inconsciente Jung explica que se deve ao caráter complementar entre os dois.

Esse conflito possui uma função que é gerar tensão, afim de promover energia e movimento, uma vez que a tendência da consciência é se manter no mesmo estado, ou seja, a inércia.

Sobre essa relação Jung (1998) diz:

“A razão desta relação é que: 1) os conteúdos do inconsciente possuem um valor liminar, de sorte que todos os elementos por demais débeis permanecem no inconsciente: 2) a consciência, devido a suas funções dirigidas, exerce uma inibição (que Freud chama de censura) sobre todo o material incompatível, em conseqüência do que, este material incompatível mergulha no inconsciente; 3) a consciência é um processo momentâneo de adaptação, ao passo que o inconsciente contém não só todo o material esquecido do passado individual, mas todos os traços funcionais herdados que constituem a estrutura do espírito humano e 4) o inconsciente contém todas as combinações da fantasia que ainda não ultrapassaram a intensidade liminar e, com o correr do tempo e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da consciência.”

O processo de consciência é uma aquisição recente na história da humanidade. Os povos primitivos não apresentam essa distinção de consciência do ego de forma tão acentuada.

Os conteúdos da consciência apresentam uma qualidade de pensamento dirigido, que é a base do pensamento moderno.

Pensamos de forma dirigida, linguística, para os outros e falamos a outros, ou seja, é a exteriorização da ideia formulada, passível de comunicação.

Mas quando não pensamos de forma dirigida, os pensamentos deixam de seguir uma linha reta, mas eles flutuam. Seria uma espécie de “ato voluntário interior”, ou melhor “um jogo automático de ideias”. Este pensamento não requer esforço e afasta da realidade para fantasias do passado e futuro.

Esse pensamento fantasioso é a natureza do inconsciente.

Portanto, temos já na estrutura da linguagem de consciente e inconsciente uma diferença marcante, porém complementar.

Sobre a consciência Jung (1986) diz:

“A natureza determinada e dirigida da consciência é uma aquisição extremamente importante que custou à humanidade os mais pesados sacrifícios, mas que, por seu lado, prestou o mais alto serviço à humanidade. Sem ela a Ciência, a técnica e a civilização seriam simplesmente impossíveis, porque todas elas pressupõem persistência, regularidade e intencionalidade fidedignas do processo psíquico.”

Mas a qualidade dirigida da consciência também tem desvantagem, que é a repressão dos elementos psíquicos que parecem ser, ou realmente são incompatíveis com a consciência, ou são capazes de mudar a direção preestabelecida e, assim, conduzir o processo a um fim não desejado pela consciência.

A consciência determina a direção do caminho escolhido e desejado. Esta determinação é parcial e preconcebida, porque escolhe uma possibilidade particular, à custa de todas as outras. A consciência é limitada e com um julgamento que se baseia, por sua vez, na experiência, isto é, naquilo que já é conhecido. Via de regra, ele nunca se baseia no que é novo, no que é ainda desconhecido e no que, sob certas circunstâncias, poderia enriquecer consideravelmente o processo dirigido. É evidente que não pode se basear, pela simples razão de que os conteúdos inconscientes estão a priori excluídos da consciência (Jung, 1998)

Como, por exemplo, no caso dos problemas dos tipos psicológicos, a consciência se identifica com uma função se torna unilateral, reprimindo as funções que consideradas como “desagradáveis”. As outras funções que proporcionam aumento de consciência se tornam sombrias e com um funcionamento autônomo. A consciência, via de regra, consegue desenvolver duas funções, a principal e uma primeira auxiliar.

O ego, para trabalhar com as funções menos desenvolvidas (incluindo a inferior), precisa abrir mão do controle, do julgamento e do preconceito e isso só se dá por meio de um conflito grande.

Contudo, inconsciente e consciente tendem a se unir e buscar a complementaridade (principalmente na segunda metade da vida).

Essa busca de complementaridade e união, Jung observou na alquimia simbolizado pela operação alquímica denominada coniuctio.

Essa operação consiste no casamento alquímico. É a união do princípio masculino (Rei, solar, vermelho), com o princípio feminino (Rainha, lunar, branca), e é a meta da Opus alquímica e do processo de individuação.

Todo processo de aumento de consciência passa pela separação do ego e dos conteúdos inconscientes (caracterizado pela inflação egóica) e pela posterior união de ambos.

Dessa união surge um novo elemento que une ambos, que se expressa por meio de um símbolo. Esse novo elemento é a função transcendente.

Nos contos de fadas, a função transcendente aparece como o filho que resulta da união do Rei e Rainha.

A função transcendente aparece na resolução do conflito e tem como objetivo a integração dos conteúdos inconscientes na consciência.

Os símbolos podem ser expressos nas imagens encontradas na mitologia, contos de fadas, alquimia e religiões.

Temos de lutar constantemente para não condenar os conteúdos do inconsciente, e reconhecer a sua importância para a compensação da unilateralidade da consciência.

A tendência do inconsciente e a da consciência são os dois fatores que formam a função transcendente. É chamada transcendente, porque torna possível organicamente a passagem de uma atitude para outra, sem perda do inconsciente (Jung, 1998).

O símbolo é a expressão do inconsciente (como vemos nos sonhos, por exemplo), que é assimilável pela consciência dirigida. Com ele a consciência consegue “digerir” o conteúdo psíquico.

No processo de psicoterapia, o analista pode servir como função transcendente para o paciente durante a transferência. Transformando assim a relação analítica em simbólica.

Nesta função do médico está uma das muitas significações importantes da transferência: por meio dela o paciente se agarra à pessoa que parece lhe prometer uma renovação da atitude; com a transferência, ele procura esta mudança que lhe é vital, embora não tome consciência disto (Jung, 1998).

É importante ressaltar que a psique tem função auto reguladora. A reação do inconsciente ao pensamento dirigido da consciência é a reação a atitude unilateral, que pressupõe uma inflação, pois o ego evita situações que não são agradáveis, e isso é legitimo até certo ponto, pois evita conflitos desnecessários. Contudo, se afastar demais dessa ação reguladora afeta os instintos e nos afasta de nossa capacidade criativa.

A função transcendente é criativa, é a solução não aguardada, a solução mágica, que não deve ser encontrada pela disposição egóica, mas pela colaboração da consciência com o processo de regulação inconsciente.

Para finalizar, a função transcendente tem como objetivo unir a consciência e o inconsciente. O se debruçar da consciência sobre o material fantasioso do inconsciente exige coragem. O cuidado, a confrontação e a integração dos conteúdos que deveriam ser conscientes traz a ampliação da consciência, mas com isso conflito e desistência do controle do ego.

Conforme Jung (1998):

“E mesmo quando se tem suficiente inteligência para compreender o problema, falta coragem e autoconfiança, ou a pessoa é espiritual e moralmente demasiado preguiçosa ou covarde para fazer qualquer esforço. Mas quando há os pressupostos necessários, a função transcendente constitui não apenas um complemento valioso do tratamento psicoterapêutico, como oferece também ao paciente a inestimável vantagem de poder contribuir, por seus próprios meios, com o analista, no processo de cura e, deste modo, não ficar sempre dependendo do analista e de seu saber, de maneira muitas vezes humilhante. Trata-se de uma maneira de se libertar pelo próprio esforço e encontrar a coragem de ser ele próprio.”

Imagem de capa: Reprodução

Referências Bibliográficas:

JUNG, C.G. A Dinâmica do inconsciente, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1998.

JUNG, C.G. Símbolos da Transformação, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1986.

JUNG, C.G. Tipos Psicológicos. Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991.

Hellen Reis Mourão

Analista Junguiana, especialista em contos de fadas e Mitologia, escritora, professora e palestrante.

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Hellen Reis Mourão

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