Por Rubem Alves, em seu site oficial
Título original: Os grandes contra os pequenos
Vou contar uma estória que aconteceu de verdade. Sobre um menininho de oito anos, meu amigo. Passei, por acaso, na cidade onde ele mora. O avião chegou tarde. Seus pais foram me esperar no aeroporto. Enquanto íamos para casa perguntei:
– Então, e o Gui, como vai?
– Ah! Sua mãe me segredou, preocupada. Não vai bem, não. Na escola. O orientador educacional nos chamou. Problemas de aprendizagem, desatenção, cabeça voando, incapacidade de concentração. Até nos mandou para um psicólogo.
Fiquei surpreso. O Gui sempre me parecera um menininho alegre, curioso, feliz. O que teria acontecido?
Sua mãe continuou:
– O psicólogo pediu um eletroencéfalo…
Aí me assustei. Imaginei que o Gui deveria ter tido alguma perturbação neurológica grave, algum desmaio, convulsão…
– Não, não teve nada – a mãe me tranqüilizou. Mas o psicólogo pediu… Nunca se sabe… Até ele não aceitou o exame no lugar onde mandamos fazer. Pediu outro…
Fiquei imaginando o que deveria estar se passando na cabeça do Gui, pai e mãe indo conversar com orientador, entrevista com o psicólogo, depois aquela mesa, fios ligados à cabeça. Claro que alguma coisa deveria estar muito errada com ele. Tendo visto tantos desenhos de ficção científica na TV, é provável que ele tivesse pensado que, quando a máquina fosse ligada, os seus olhos iriam acender e piscar como luzinhas de diversões eletrônicas…
Quando acordei, no dia seguinte, estranhei. Não vi o Gui lá pela casa. Mas era sábado, dia lindo, céu azul. Com certeza estaria longe, empinando uma pipa, jogando bolinhas de gude, rodando pião, brincando com a meninada. Dia bom para vadiar, coisa abençoada para quem pode. Pelo menos é isto que aprendi dos textos sagrados, que o Criador, depois de fazer tudo, no sábado parou, sorriu e ficou feliz…
– Não, ele está estudando.
Foi aí que comecei a ficar preocupado. Assentadinho, no quarto, livro aberto à sua frente. Nem veio me dar um abraço. Ficou lá, com o livro. Cheguei perto e começamos a conversar. E ele logo entrou na coisa que o afligia:
– É, tenho de fazer quinze pontos, porque se não fizer fico de recuperação. E isto é ruim, estraga as férias…
Lembrei-me logo do ratinho preso na caixa. Se pular alto que chegue, ganha comida. Se falhar, leva um choque… O seu pêlo fica arrepiado de pavor, com medo do fracasso. Ficou doente. Fizeram-no doente.
Eu não sabia o que é que os tais quinze pontos significavam. Mas compreendi logo que eles eram o limite abaixo do qual vinha o choque. O Gui já aprendera lições não ensinadas: que o tempo se divide em tempo de aflição e tempo de alegria, escola e férias, dor e prazer… E a professora ainda queria que ele se concentrasse, e gostasse da coisa… Mas como? A cabecinha dele estava longe, o tempo todo, pensando em como seria boa a vida se a escola também fosse coisa gostosa. Desatenção na criança não quer dizer que ela tenha dificuldades de aprendizagem. Quer dizer que há alguma coisa errada com a escola, e que a criança ainda não se dobrou, recusando-se a ser domesticada…
Continuamos a conversa e ele começou a falar de uma forma estranha, que eu nunca ouvira antes. Vocês podem imaginar uma criança de oito anos falando em aclive e declive?
Pois é, não agüentei e interrompi:
– Que é isto, Gui? Por que é que você não fala morro abaixo e morro acima?
– Mas a professora disse…
Compreendi então. A pinoquização já se iniciara. Um menininho de carne e osso já não usava mais suas próprias palavras. Repetia o que a professora dissera…
Fiquei pensando em quem é que estava doente: o menino ou a escola…
Claro que o ratinho tem que ficar de pêlo arrepiado. Pois o choque vem… E eu pergunto se não está mais doente ainda quem dá o choque. Surpreendi-me com esta enorme e perversa conspiração entre a direção das escolas, os orientadores, os psicólogos. Todos unidos, contra a criança. O orientador, coitado, não tem alternativas. Se se aliar à criança, perde o emprego. Ele é o ideólogo da instituição, encarregado de convencer os pais, por meio de uma linguagem técnica, de que tudo vai bem com a escola e de que é melhor que eles cuidem da criança.
– Até que ela não é má. Só está tendo problemas. Seria bom levá-la a um psicólogo…
O psicólogo, por sua vez, fica atrapalhado. Que é que vai fazer? Desautorizar o diagnóstico de uma rara fonte de clientes? É melhor fazer um eletro. Fios e gráficos dão sempre um ar de respeitabilidade científica a tudo…
Lembrei-me da velhíssima estória do cliente que chegava ao analista e dizia:
– Doutor, tem um jacaré debaixo da minha cama!
– Sua cama não está na beirada da lagoa, está? Então não há jacaré nenhum debaixo da sua cama. Volte para casa, durma bem…
E assim foi, semana após semana, até que o tal cliente não mais voltou. O analista ficou feliz. O tipo devia ter-se curado da estranha alucinação. Até que, um dia, encontrou-se na rua com um amigo do homem do jacaré.
– Então, e o fulano, como vai? Sarou de tudo?
– Mas o senhor não soube do acontecido? Ele foi comido por um jacaré que morava debaixo da sua cama…
Há muitas escolas que não passam de jacarés. Devoram as crianças em nome do rigor, de ensino apertado, de boa base, de preparo para o vestibular. É com essa propaganda que elas convencem os pais e cobram mais caro… Mas, e a infância? E o dia que não se repetirá nunca mais? E os sonos freqüentados por pesadelos de quinze pontos, recuperação, férias perdidas e palavras de ventríloquo? Escolas- jacarés, que as crianças têm de freqüentar, e quando começam a demonstrar sinais de pavor diante do bicho, tratam logo de dizer que o bicho vai muito bem, obrigado, que é a criança que está tendo problemas, um foco cerebral com certeza, neurologista, psicólogo, psicanalista, e os pais vão, de angústia em angústia, gastando dinheiro, querendo o melhor para o filho…
Quanto a mim, considero que isso não passa de crueldade dos grandes contra os pequenos. Torturá-los agora, em benefício daquilo que eles poderão ser, um dia, se caírem nas armadilhas que os desejos dos grandes para eles armam…
Não, Gui, fique tranquilo. Está tudo certinho com você. São os outros que deveriam ser ligados a fios elétricos até que os seus olhos piscassem como se fossem lâmpadas de brinquedos eletrônicos…
Imagem de capa: Barbara Sauder/shutterstock
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