Seria uma bênção acordar sangrando. Haveria testemunhas para esse fato impossível de ser ignorado. Há sangue! Procura-se por um ferimento, uma causa, um trauma. Ninguém sangra à toa. Mas há quem sangre de forma secreta, silenciosa, solitária. A depressão é um tipo de hemorragia interna; só que o que sangra é a alma.
Os mesmos olhos que custaram uma eternidade para receber a visita acolhedora do sono, não são capazes de despertar. Ardem, pesam, parecem conter milhões de micropartículas de areia. Os olhos são visíveis; a insônia e a fadiga, não. Às vezes, alguém do lado de fora pode até perceber “Puxa, você está com olheiras. Tá tudo bem?” ou “Como seus olhos estão vermelhos! Está resfriado?”. Não, não está tudo bem! E, não, não é resfriado. Mas, a maior parte dos parceiros da depressão está acostumada a fingir que não sente nada. E, na maioria das vezes, responde automaticamente “Sim, está tudo bem. Deve ser apenas um resfriado.” O resfriado é fácil de compreender, todo mundo está autorizado a ter. E o “tudo bem” é o que o outro espera ouvir, para poder ficar “tudo bem” pra ele também. Complicado?! Ahhh… É! Muito complicado!
A expectativa de vida é reduzida para as pessoas que sofrem de depressão; assim como a sua capacidade de conviver, produzir, pensar e interagir. Indivíduos deprimidos são mais suscetíveis a diversas doenças como diabetes, fibromialgias, disfunções hormonais e enxaquecas. Desequilíbrios no sistema nervoso (que é responsável pela sensibilidade à dor) ou no sistema límbico (que é responsável por reger as emoções) causam uma dupla disfunção: a dor crônica pode levar à depressão, assim como o inverso também é comprovado. Só nos Estados Unidos, o consumo de antidepressivos aumentou 400% em 20 anos. Mas, historicamente, depressão é um conceito que apareceu ainda ontem. Por séculos, ela foi uma doença cheia de mistérios conhecida como melancolia.
Estamos atolados num tipo de epidemia do desconforto emocional: há mais pessoas deprimidas do que jamais houve. Uma piada sarcástica diante de uma época em que ser feliz é quase uma obrigação. Todo mundo quer ser feliz, bonito, rico, bem-sucedido, amado e, se possível que tudo isso venha num passe de mágica, com pouco ou nenhum esforço. E, quando o mundo todo parece estar se divertindo numa festa para qual não fomos convidados, vem um vago sentimento de tristeza. No entanto, é preciso cuidado: tristeza não é, nem de longe, a mesma coisa que depressão.
O ritmo e estilo de vida que insistimos em comprar a preços altíssimos, nos lança numa montanha-russa de angústia e ansiedade que pode levar a sensações prolongadas de tristeza e apreensão. Ficamos muito vulneráveis aos apelos de uma sociedade inquieta que exige de nós o máximo, a excelência, a última gota. É como caminhar numa estrada sem luz, desconhecida e cheia de obstáculos: nunca sabemos o que está por vir. Só nós mesmos é que podemos nos salvar dessa armadilha. Parar. Respirar. Rever. Avaliar. Escolher. Escolher é a única forma lúcida de administrar o que vale a vida. Talvez a única forma de evitar que a tristeza se prolongue a ponto de encontrar uma confortável morada dentro de nós. Mas, isso ainda não é depressão. Depressão é doença, não é falta de coragem para enfrentar as vicissitudes da vida; não é artifício para chamar a atenção; não é frescura; não é falta do que fazer. Depressão não se cura sozinha ou à custa de repouso e Vitamina C, qual uma virose. Não é contagioso, mas coloca quem a carrega, muitas vezes, em situações de isolamento. A Organização Mundial da Saúde sinaliza para a forte possibilidade de que em 2030 a depressão venha a ser a doença mais comum do mundo, ultrapassando os problemas cardíacos e o câncer. O que torna isso ainda mais preocupante é que estamos ainda flertando com ela, não a conhecemos o suficiente para compreendê-la.
Engana-se, no entanto, aqueles que associam a doença depressiva ao cenário caótico da modernidade. Na Grécia antiga, os filósofos associavam a melancolia à superioridade intelectual e à personalidade social seletiva, sem qualquer aproximação com o conceito de doença. O médico inglês Thomas Willis, foi o primeiro a relacionar a melancolia à mania (em meados do século XVII), definindo o que seria um ciclo maníaco-depressivo. Neste mesmo século, Robert Burton, um filósofo, aponta para os costumes sociais como os grandes disparadores dos estados de melancolia. A primeira tentativa de categorização psiquiátrica sobre melancolia foi realizada no final do século XVIII com Pinel, por meio de observações clínicas e agrupamento de sintomas, e então, com a instauração do saber psiquiátrico no Século XIX, a melancolia foi transformada em doença mental, sem qualquer sinal de romantismo literário. Esquirol a denominou de “lipermania” ou “monomania triste” e Jean Pierre Falret de loucura circular, aproximando a melancolia da mania. Foi então que, no final do século, Emil Kraepelin integrou a melancolia à loucura maníaco-depressiva, fundindo-se em seguida à psicose maníaco-depressiva.
A Escala de Depressão de Beck ou Inventário de Depressão de Beck (Beck Depression Inventory, BDI, BDI-II), criada por Aaron Beck e publicada em 1961, que consiste em um questionário com 21 itens de múltipla escolha, é um dos instrumentos mais utilizados para medir a severidade de episódios depressivos; seu desenvolvimento é um divisor de águas que marcou a mudança de comportamento entre os profissionais de saúde mental. Anteriormente a depressão era entendida como o efeito de pressões psicológicas externas, aliadas à interação entre as motivações conscientes e inconscientes do indivíduo deprimido. O conceito original desse pressuposto foi desenvolvido por Sigmund Freud. A Escala de Depressão de Beck propõe tratar o diagnóstico da depressão, considerando sua manifestação a partir de perguntas que abordem questões mentais advindas dos próprios pensamentos dos pacientes.
Na sua versão atual, o questionário é desenhado para pacientes acima de 13 anos de idade e é composto de diversos itens relacionados aos sintomas depressivos, tais como: desesperança; irritabilidade e cognições (culpa ou sentimentos de estar sendo punido); assim como sintomas físicos como fadiga, perda ou ganho de peso e diminuição da libido. Existem três versões da escala: a BDI original, publicada em 1961 e revisada em 1978; a BDI-1A; e a BDI-II, publicada em 1996. A escala é largamente utilizada como ferramenta para medida por profissionais de saúde e pesquisadores em uma variedade significativa de contextos clínicos e de pesquisa. Desnecessário alertar para o fato de que soa no mínimo ingênuo e simplista tentar reduzir algo tão complexo quanto a depressão a uma série de lacunas marcadas com “X”!
Conviver com a depressão e com os depressivos é um desafio diário de coragem, tolerância, persistência e compaixão. Os pacientes vivem num espaço de tempo e lugar em dimensão diferente dos indivíduos que não convivem com as alterações involuntárias de humor; tudo lhes parece fútil, ou sem real importância; perdem a capacidade de ver o mundo em cores; lutam para ignorar a cratera que sentem no peito, causada pela incapacidade de sentir alegria. As crianças e adolescentes, são atingidas por um complicador ainda mais cruel: muitas vezes, em vez de parecerem tristes, mostram-se irritáveis e agressivos. O deprimido, com frequência, julga-se um peso para os familiares e amigos, muitas vezes mesmo que não chegue a considerar a ideia de por fim à própria vida, nutre desejos de que a morte chegue simplesmente.
E, como mais uma das maravilhas científicas do mundo moderno, no meio dessa aparente situação de trevas emocionais, surgem as “milagrosas drogas antidepressivas” e “reguladores de humor” que, sem dúvida, reduzem os efeitos e arranham a casca da depressão e seus efeitos aparentes e observáveis. Meses de introdução, acerto de dosagem e troca de medicamentos; até que psiquiatra e paciente cheguem a um acordo para determinar o que, quanto e quando será administrado para que os efeitos colaterais sejam menos devastadores do que viver com a depressão. Acerto de medicação; comprometimento do paciente, familiares e outros envolvidos; acompanhamento indispensável de terapia comportamental cognitiva ou psicanálise; acenam para uma convivência menos sofrida com o desafio da depressão.
Alcançar a cura, ou a remissão dos sintomas não é, nem de longe, uma tarefa simples. É jornada que envolve a todos que estiverem minimamente relacionados a quem luta para permanecer inteiro até o fim de cada dia, ainda que amanheça sangrando invisivelmente.
Ana Macarini
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