Por Marcia Berman Neumann, Marcela Alice Bianco e Andréia Carelli L. Magalhães
E se seu filho fosse seu maior inimigo? E se o outro fosse você? O Cine Sedes Jung e Corpo apresenta a análise dessa trama psicológica imperdível.
Um drama familiar, um dilema individual e ao mesmo coletivo: a necessidade de olhar para o “Outro” e reconhecer a si mesmo como em um espelho! O exercício do amor, da alteridade e da reflexão! São muitos os pontos trazidos pelo belíssimo e impactante drama francês: O Filho do Outro (Le Fils de l’Autre, 2012), da diretora Lorraine Lévy.
A trama retrata um assunto polêmico de maneira brilhante e sutil! Somos apresentados a duas famílias que veem suas vidas reviradas ao descobrirem que tiveram seus filhos trocados no hospital em que nasceram.
De um lado encontra-se uma família judia, que vive em Tel Aviv, Israel. Seu filho Joseph está prestes a ingressar no serviço militar quando um teste de sangue revela que não poderia ser filho daquela família. Sua mãe médica, Orith, e seu pai, Alon, que tem um alto cargo no exército israelense, ficam atordoados com a notícia e acabam descobrindo que seu bebê foi trocado na maternidade por um outro bebê, palestino.
Já no outro núcleo, temos Yacine, filho de Said e Leila, e irmão de Bilal, palestinos que moram na Cisjordânia e que também recebem a notícia da troca, ficando consequentemente chocados.
O conflito religioso e político entre judeus e palestinos permeia as polaridades mostradas aqui no filme. São famílias que vivem em culturas opostas em todos os sentidos, mas que devido a uma situação traumática são forçados a viver uma experiência que demandará muita empatia. Afinal, os dois jovens descobrem: EU SOU MEU MAIOR INIMIGO… PRECISO ME AMAR MESMO ASSIM.
De imediato o filme nos coloca como tema central a questão das polaridades da vida e a função da alteridade, que propõe uma relação dialética, simétrica, entre as polaridades.
A questão das polaridades é apresentada na psicologia Junguiana como a base do funcionamento da experiência simbólica. Morte e vida, luz e sombra, bem e mal, certo e errado – toda nossa vivência é baseada em polaridades. Elas influenciam sobremaneira os relacionamentos em geral e podem estar na base das imagens, fantasias, sentimentos, pensamentos, sonhos, projeções, etc.
Quando mantemos nossas identidade e visão fixadas apenas em um dos aspectos dos pares de opostos, nossas capacidades adaptativa e criativa ficam comprometidas. Nossos relacionamentos cristalizam-se e nossa personalidade se enrijece.
A função da alteridade nos permite a saída deste padrão engessado de relacionamento consigo mesmo e com o outro. Porém, o colocar-se no lugar do outro nem sempre é tarefa fácil. Pelo contrário, exige de nós um grande poder de empatia e desapego. Para isso, precisamos abrir mão de nossa certezas e convicções, elaborar nossa Sombra (aspecto do inconsciente que carrega tudo aquilo que é negado em nós) e trazer para a consciência todas essas oposições, integrando-as de maneira transformadora na consciência.
Os filhos recebem a notícia que foram trocados e ficam profundamente abalados. Suas identidades são postas em cheque. Vemos aqui a questão da Natureza versus a marca da Cultura e do Inato versus o Aprendido. A fala de Joseph quando pergunta ao Rabino: – Ele é mais judeu que eu? é um grande exemplo do impacto desta nova realidade na personalidade do jovem. Mostra a ferida que se abriu em sua identidade a partir daquilo que até então era desconhecido para ele (sua origem) e a necessidade de uma nova formatação para a mesma. Os questionamentos deterministas podem ser entendidos nesta fala. Seria o sangue, a cultura, a educação, os relacionamentos, os interesses ou outro aspecto, o(s) determinante(s) da nossa identidade?
Diante de todo este drama, as famílias resolvem se encontrar. A família de Joseph convida todos para um jantar. Nesta cena, podemos ver as diferenças nas relações entre adultos e jovens, assim como entre os homens, as mulheres e as crianças.
As crianças rapidamente fazem uma ligação: as irmãs menores de ambas as famílias vão brincar juntas. Ainda não possuem o peso tão forte da cultura e da compreensão da realidade quanto os adultos. Já os jovens (Joseph e Yacine), vão conversar e se conhecer melhor. Os pais ficam na sala e percebe-se ali um grande incômodo devido à questão religiosa-cultural. A situação é realmente difícil, pois eles devem trazer o inimigo para dentro de suas casas e aprender a amá-lo e respeitá-lo. Aqui temos a presença de uma interferência vinda da dimensão coletiva: um bombardeio no hospital foi o problema que afetou as duas famílias e gerou um conflito comum, determinando em ambas uma transformação profunda.
As mulheres têm mais facilidade para aceitar as diferenças, as emoções e são mais abertas para acolher-agregar o outro. Mostram-se mais flexíveis. O instinto materno faz com que elas queiram se aproximar e cuidar dos filhos biológicos, e elas se aliam com respeito e reconhecimento das diferenças que haviam entre elas, mas também com a empatia gerada pela semelhança entre suas dores. Já os homens quase não têm diálogo e a dificuldade de lidar com o afeto e o conflito impera a maior parte do tempo, como na cena em que tomam café juntos, um indício de aproximação, mas ficam calados.
A descoberta da troca dos bebês é vivida como uma verdadeira experiência de luto, e um processo de elaboração tanto individual quanto familiar é percebido no desenrolar do filme. Cada um ao seu modo e no seu tempo passam pelas etapas de choque, negação, revolta, expressividade emocional, depressão e, por fim, a aceitação. As diferenças individuais nesta questão também são motivo de confronto entre os personagens, o que nos faz pensar que é preciso respeitar o tempo de cada um, bem como suas defesas, a forma como estão estruturadas e a importância da elaboração delas.
O filme nos coloca em contato com as oposições o tempo todo. Os jovens resolvem cruzar as fronteiras em busca de suas identidades – SOU O OUTRO OU O OUTRO SOU EU?
O conflito apresentado pelo enredo ocorre bem em um momento que marca a construção da identidade dos jovens: a saída da adolescência e a entrada na primeira fase da vida adulta. Momento crucial e estruturante para a personalidade e para a definição de formas de agir no mundo. Período de emancipação e busca, de experimentação da vida.
É através do contato informal com o outro que eles exercitam a desconstrução da identidade e a descoberta de si e do outro. Podem julgar o quanto são fruto da cultura onde foram criados, dos valores ensinados e do que querem se tornar deste momento em diante. Quando Yacine diz ao irmão Bilal – EU VOU SER O QUE EU QUISER! – ele está elaborando essa questão e procurando uma terceira via, que não é mais nem um polo e nem o outro, é uma terceira coisa: Ele!
A individuação aparece aqui como uma força que impulsiona para a integração desses opostos: os jovens são obrigados a viver a realidade do outro, a se comunicar na língua do outro, e atravessam a fronteira física (o muro que separa Israel da Palestina), pessoal (Ego), familiar, sociocultural e política. Precisam transpor uma grande tensão para obter o pertencimento. E aos poucos eles se abrem para o novo, para o seu oposto.
O espelho produz essa possibilidade de conscientização. Através dele, Joseph e Yacine veem suas imagens refletidas e lembram-se de Isaac e Ismael, dois filhos de Abraão, sendo que do primeiro segue a descendência judia e do segundo a descendência árabe, mas ambos filhos do mesmo pai, mostrando aqui a mesma origem e a possibilidade de uma integração das polaridades outrora estabelecidas.
No filme os jovens conseguem integrar os opostos pelo funcionamento afetivo, e não no nível agressivo, ou no mundo das ideias. É a experiência vivida que permite a transformação. A música, a sensibilidade e a busca de algo que é comum a eles e que os conecta são as pontes que possibilitam essa construção amorosa da relação consigo mesmo e com o outro. Eles obtêm um novo entendimento sobre questões difíceis e mostram para nós, espectadores, de um modo emocionante, como é possível viver da melhor maneira, como ter orgulho de si e dar orgulho ao outro, já que é ele que está ocupando o seu lugar! Descobrem que não é o rabino ou alguma outra autoridade que lhes dará esta resposta – eles terão que construir suas próprias histórias e suas identidades.
Existe aqui um fato interessante a ser analisado que é o chamado biológico, muito comum em casos de adoção ou de troca de bebês. Esse chamado para um entendimento profundo de quem eu sou, a quem ou qual grupo eu pertenço é muito comum, forte e importante.
Podemos pensar que se ambos fossem da mesma cultura, o drama seria vivido de modo mais pessoal e menos inclinado às questões coletivas e culturais. Este fato cultural, histórico e religioso que está para além de suas identidades e que nada tem a ver com eles, ao mesmo tempo tem tudo a ver, pois é nesta realidade que estão inseridos!
As polaridades aqui são representadas por identidades opostas, a criação nas famílias com culturas diferentes. A psique também lida com questões opostas, pois fazem parte de nossa psique as oposições. A grande questão é COMO lidamos com as mesmas.
As relações sadias de apego com as mães são o alicerce de ambos os filhos para conseguirem lidar com toda a problemática instalada. A via do materno acolhedor também ajuda na conciliação do aspecto Patriarcal predominante. Cada mãe encontra seu jeito de digerir a realidade da maternidade vivida e da maternidade negada, e aos poucos ambas se aproximam da nova realidade e de seus “novos” filhos.
O que está fora também está dentro, o que está em cima também está embaixo! E com essa noção de que em cada parte existe também o seu oposto percebemos o OUTRO que habita em Nós! Mas como realmente conseguimos fazer esse exercício ante nossos julgamentos de valor?
Seja nos obstáculos das fronteiras físicas entre os países ou nos preconceitos e julgamentos morais, para que possamos integrar os opostos será preciso romper as barreiras, encarar os riscos, assim como faz o pai que é militar israelense e cruza a fronteira sozinho à noite. Ou como faz Bilal, irmão de Yacine que precisa lidar com o medo de perder tudo o que tem construído e se abrir para o “novo” e para o “velho” irmão.
O Filme também mostra a consciência Patriarcal agindo ao considerar excludentes os polos opostos de uma polaridade, como a discriminação entre BEM e MAL (representado por Bilal). Em contrapartida apresenta a necessidade de se transpor esse modelo e aponta para a consciência da Alteridade, que busca simetria, sintonia, um diálogo não hierárquico entre as polaridades. O próprio título do filme nos remete a pensar na Alteridade como um caminho a ser almejado.
Como enfatiza Maria Helena Mandacarú Guerra: AMAR O INIMIGO É O DESAFIO! Para isto é preciso um encontro da humanidade, no qual se busca uma identidade mais profunda, uma síntese. Afinal, somos todos filhos da mesma mãe Terra!
Por fim, podemos pensar que a autora foi brilhante ao nos fazer refletir sobre os conflitos que existem no mundo e em nós mesmos de maneira tão afetiva. Mais uma vez, a arte nos leva a querer lidar com as polaridades de uma forma equilibrada! Mas, sejamos sinceros, que desafio, não?
Por Marcia Berman Neumann, Marcela Alice Bianco e Andréia Carelli L. Magalhães
Comissão Organizadora Cine Sedes Jung e Corpo
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Este texto foi produzido pela Comissão Organizadora do Cine Sedes Jung e Corpo com base nas reflexões realizadas durante o evento realizado em Abril de 2015, com os comentários do Profa. e Psicóloga Junguiana Maria Helena Mandacarú Guerra e Psicóloga Clínica Thaís Khoury de Souza.
O Cine Sedes Jung e Corpo é uma atividade extracurricular do curso Jung e Corpo: Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.
É um evento gratuito e aberto ao público geral organizado pelos professores do curso em conjunto com ex-alunos e ocorre todas as últimas sextas-feiras dos meses letivos do curso.
Para maiores informações acompanhe o Blog do Cine Sedes Jung e Corpo
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