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Millôr Fernandes costumava dizer que “O importante é ter sem que o ter te tenha”. Tenho a impressão de que essa frase não se coaduna com o modus vivendi da sociedade contemporânea, de modo que a sua atualização seria em termos baumanianos – “O importante é ter, aparentar ser, mesmo que não seja”. Isto é, dentro da sociedade de consumo há um predomínio quase absoluto da aparência ante a realidade.
A mudança de um cogito, que substitui o indivíduo para em seu lugar colocar coisas, ocorre pelo fato de vivermos em uma sociedade em que o próprio indivíduo é valorado tão somente por aquilo que possui, o que em outras palavras significa dizer que o ser humano também foi transformado em coisa e é comercializado no mercado da personalidade, no qual recebe seu valor não por aquilo que é, e sim, por aquilo que possui e, por conseguinte, aparenta ser.
Sendo assim, devemos considerar que as coisas, nesse prisma, adquirem um valor muito maior do que necessariamente/realmente possuem, o que nos leva a dois conceitos. O primeiro é o fetichismo da mercadoria construído por Marx, em que as coisas passam a transcender o seu valor em si (de uso e de troca) para adquirir uma valoração determinada pela construção social. Ou seja, o olhar social faz com que determinados produtos exerçam conotações que extrapolam o seu real valor, fazendo, consequentemente, que passemos a “querer/desejar” adquirir determinada coisa não por real necessidade e/ou vontade, mas por querer “ter” a aparência que o consumo da coisa determinada produzirá.
Trocando em miúdos, as coisas, os produtos, as mercadorias, colocados na rede do capitalismo, criam um fetiche que seduz os indivíduos a buscarem por meio do consumo a incorporação em personagens que remetam à aparência de vidas felizes e de sucesso, ainda que internamente não haja qualquer tipo de felicidade, tampouco, sucesso.
Sendo assim, a partir do fetichismo da mercadoria as coisas são personificadas e as pessoas são coisificadas, recebendo os rótulos dos seus preços, os quais devem estar bastante aparentes nas prateleiras. Esse mecanismo nos leva ao segundo conceito, a saber, o de hiper-realidade, construído por Jean Baudrillard, filósofo francês. Para ele, as coisas são ressignificadas a partir da perspectiva de quem olha. Isto é, nós (sociedade) passamos a exercer um juízo significante em relação às coisas, de modo que haja uma supressão do valor real do próprio ser e em seu lugar seja erigido o valor das coisas, obviamente, com seus novos valores sígnicos.
Em um mundo marcado pela aparência e superficialidade, não há de se estranhar que o homem prefira despir-se de si para buscar por todos os meios se tornar alguém que não é, mera aparência frágil de imagens determinadas pelos detentores do poder, preocupados tão somente em criar um exército de pessoas completamente iguais em sua superficialidade débil.
Diante disso, parece-me que na medida em que preferimos viver em um mundo de aparências, esquecemo-nos que os outros também usam máscaras, e que entre o abrir e o fechar da cortina, a vida tornou-se completamente um grande teatro, em que os atores secundários são homens desumanizados admirando a excelência do protagonismo de coisas heroificadas (fetichizadas e ressignificadas), enquanto o público, igualmente desumanizado, aplaude, sem qualquer preocupação com a fragilidade com o que somos, mesmo que, por trás de todo aparato mercadológico, se esconda a real aparência da insustentável leveza do ter.