Eu estava ocupada demais com a minha vidinha, quando o Sami desperdiçou em mim um sorriso de reencontro. Passei por ele de carro, e não o percebi. Um convite no Facebook foi a maneira que ele achou de retomar o contato. “Oi, lembra de mim? Trabalhei no Edifício “X”, eu era o porteiro”. E eu pensei comigo, “mas que diacho, tem que aceitar até o porteiro hoje em dia…”, aborrecida por não lembrar de onde ele criou certo vínculo. Foi quando ele lembrou “te levei para o hospital aquela vez que você passou mal no estacionamento, lembra? Como você está?”. A ficha caiu. O Sami foi a alma boa que me colocou no carro, de camisola, quando tentei ir sozinha ao hospital, no meio de um ataque de pânico, porque meu namorado da época achou que eu só estava tendo um “chilique”. O Sami viu além do chilique.

O contato do Sami me fez pensar em todas as pessoas que se tornam invisíveis com o tempo. Uma vez, no meio de uma briga com o mesmo namorado, fui novamente parar no hospital com o braço torcido – o dono da minha afeição puxou uma máquina fotográfica da minha mão, quando a alça engatou no meu pulso e meu cotovelo estralou ao contrário. Cheguei à emergência aos prantos, acredito hoje, que mais de assustada do que de dor. Como alguém que eu gostava tanto era capaz de me causar medo? O médico tentou me acalmar dizendo que meu braço estava bom, e que eu só estava nervosa. Ainda assim, engessou o braço por três dias. Talvez querendo assustar meu agressor, talvez porque não pudesse engessar meu coração – esse sim, quebrado aos pedaços. Aquele médico viu além do meu braço.

A Maria trabalhou anos na minha casa. Ela acordava 2h antes que eu, para garantir que eu ia acordar na hora pra escola, ter café da manhã pronto e caminhar comigo, a longínqua meia quadra até o ponto de ônibus, percurso que meu pai nunca me deixou fazer sozinha. A Maria sempre esteve em casa, enquanto minha mãe e pai trabalhavam. Ela me viu virar mocinha, quando aos 13 anos meu corpo decidiu que eu devia “virar mulher”, me deu uma bolsa de água quente para a minha primeira cólica e disse que eu ia ter que começar a me cuidar. Eu fui amada e criada pelos meus pais, e também pela Maria. Hoje, a Maria não trabalha mais conosco. Quando encontra comigo ou com o meu irmão na rua, nos abraça, aperta, elogia, apresenta aos amigos como “seus filhos”. Ela é convidada para todos os eventos importantes da família – formaturas, aniversários e possivelmente será uma das mais orgulhosas da igreja quando eu subir num altar. Mas a Maria nunca almoçou com a gente na mesma mesa. Na hora do almoço, a Maria era invisível.

Logo que comecei a trabalhar na empresa da família, me fizeram usar uniforme, como todas as mulheres da empresa. Os homens do administrativo e comercial não usavam uniforme, apenas as mulheres. “Para se darem o respeito, e não aparecerem de minissaia” escutei de alguém uma vez. Ora bolas, não acreditava que precisava de uniforme pra me dar respeito. Certa vez, visitando a empresa de meu tio, sócio do meu pai, ele entrou na sala, cumprimentou meu pai e me pediu um café. Achei graça e disse “oi tio!”, quando ele virou-se assustado, me olhou de novo e se deu conta que a garota de uniforme era a sobrinha dele – “desculpa minha querida, não te reconheci de uniforme”, alegou. Não é que ele não havia me reconhecido – ele não havia me enxergado. Para ele, de uniforme, eu era invisível. Não sosseguei até eliminar o uniforme feminino da empresa. Nunca vi um peito de fora ou uma minissaia. Eu entendi que o medo era o que poderia acontecer se os homens da empresa passassem a nos enxergar. Eles preferiam que fossemos invisíveis.

Quando fui morar em Londres, meu primeiro emprego não foi na grande corporação que coloquei no meu currículo – foi num café. Eu era barista, garçonete e faxineira de um pequeno café em Belsize Park, um bairro imponente em Hampstead Town. Foi neste café que aprendi a diferença entre as pessoas que enxergam e as que não enxergam quem as serve. Algumas pessoas separavam alguns minutos do dia pra tomar café e perguntar como estava a minha família no Brasil, pediam licença, agradeciam, sorriam e me olhavam nos olhos. Sabiam meu nome. Outras me viam todos os dias, mas nunca me enxergavam. Lembro-me da ginástica que fazia para servir o chá com um teapot fervente nas mãos por cima de ombros e cabeças que nunca se esquivaram para me dar espaço. Na hora do chá, eu era invisível.

Em certa ocasião, servia uma moça e sua filha, quando a janela do estabelecimento ficou tomada de paparazzis. A moça que eu servia – com uma carinha de quem havia abusado de certa dose de drogas e rock n’ roll – era Kate Moss, depois de muito tempo percebi. Fechei a cortina do café tapando a visão dos paparazzis, depois servi um chá verde à modelo e um muffin de raspberry para a filha dela, que tinha as sardinhas mais bonitinhas que já vi. Ela sorriu agradecida, tudo que ela queria naquele momento era ser invisível. E eu a vi além da fama. Ali ela só queria ser a mãe daquelas sardinhas que devoravam o muffin de raspberry.

Não me lembro de jamais ter desrespeitado alguém baseado na condição de quem serve ou quem é servido. Sempre respeitei toda forma de atendimento. Sou daquelas pessoas que dá bombons a frentista de posto de gasolina e que dedica longos minutos conversando com porteiros. Mas nada me ensinou mais na vida do que servir aos outros. Reconheço hoje que muitas vezes me faltou humildade – não para reconhecer a importância destas pessoas na minha rotina – mas para enxergá-las além do seu trabalho. Hoje eu já não deixo ninguém tirar meu prato da mesa, sem eu mesma alcançá-lo e agradecer. Sempre penso na garota com o teapot fervendo nas mãos lá em Londres.

Quando penso na minha carreira, que hoje envolve atendimento a clientes, e no rumo que quero dar pra ela, me vem na cabeça o café em Belsize Park. “Você quer voltar pra Europa pra limpar privadas?”, meu pai pergunta sentado na sua cadeira de diretor. Sorrio pra ele sabendo que ele nunca vai entender que foi limpando a privada dos outros, que eu entendi quanta merda outras pessoas tiveram que limpar/arrumar/corrigir por mim. E que isso não faz de mim alguém mais importante, mas obrigatoriamente deveria fazer de mim mais humana. Pensei nas pessoas que são obrigadas a vestirem branco em clubes de elite. Na Maria, e em todas as pessoas que deixam os próprios filhos em casa para cuidar dos filhos dos outros. Gente que auxilia em nossas atividades. Pensei nos sorrisos que são ignorados na rua, vindos de pessoas que deveriam ser lembradas. Que não deveriam ser invisíveis.

Adicionei o Sami no Facebook – ele que fez mais por mim do que muita gente que está lá na minha lista de “amigos”. Contei a ele que estava melhor de saúde, e que tinha me curado do câncer que era aquele tal namorado. Ele ficou feliz, e disse que continuava atenciosa e gentil. Ele não tinha ideia da gentileza que fez por mim ao se fazer enxergar. Ele me lembrou de que ninguém deve ser invisível.

Texto de Antônia Macchi
Fonte indicada: Antônia no Divã

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