Por Clara Baccarin
Estamos nos tornando seres sem sonhos.
Por termos que lidar com acontecimentos amargos e imprevistos na nossa vida, por termos que engolir nossos erros e derrotas e esconder nossas fraquezas. Por termos que passar por lutos de pessoas ainda vivas e continuar encontrando os fantasmas sem poder no entanto toca-los.
Por termos aprendido que ter é muito mais importante do que querer, que possuir nos faz mais ricos do que apenas almejar, que concretizar ideias e vontades é mais valioso do que o simples imaginar.
Por já não podermos, como era na infância, gargalhar descomedidamente por conta de uma simples brincadeira, e chorar desconsoladamente por uma viagem interrompida. Por não podermos nos aceitar fracos, infantis, ingênuos…
Pelo mundo exigir da gente mais sensatez do que paixão.
Em algum momento, desenvolvemos a capacidade de controlar nossos sonhos antes que eles nos devorem ou deformem.
Em algum momento, desaprendemos a sonhar como verbo intransitivo. A sonhar como fim em sim mesmo.
Desaprendemos o ato de contemplar e começamos a fabricar metas, a visualizar alvos, a traçar passos realistas.
Em algum momento, aprendemos a gerenciar nossas emoções da mesma forma que gerenciamos nossos compromissos profissionais. Agrupamos nossos sonhos na ala das metas a serem cumpridas, catalogamos os nossos sentimentos, acompanhamos atentamente nossas variações internas a fim de podar aquelas sensações que podem nos fazer parecer meio loucos, meio bobos, meio infantis.
Aprendemos a vetar os comportamentos inaceitáveis. Aprendemos a não nos permitir seguir impulsos, a não aceitar certas atitudes nas outras pessoas, e quando nos deparamos com essas atitudes, sem pensar e sem dó, jogamos no nosso lixo virtual e taxamos como spam.
Afinal não podemos perder tempo com coisas incertas, erradas e que não trazem bons frutos imediatamente. Não podemos sujar nossos limpos e lineares caminhos com sentimentos confusos, pessoas inconstantes, acontecimentos avassaladores.
Não temos tempo para o sofrimento! Sim porque, sonhar sem realizar é puro sofrimento.
Por não aceitarmos que sonhos às vezes não se cumprem. Que promessas de momentos às vezes servem apenas para adoçar as lembranças. Que paixões vivem além da presença do outro.
Aprendemos a criar o nosso próprio ‘manual do não sofrimento’.
E assim nos protegemos, e assim não precisamos passar pelas mesmas dores duas vezes. Pois, seguindo esse manual, já sabemos, antes mesmo de olhar mais atentamente nos olhos do outro, onde não devemos pisar. Pela comparação, já reconhecemos de cara o que pertence à lista das coisas inaceitáveis.
Aprendemos a assassinar a paixão. Aprendemos a culpar o outro por não se enquadrar nas nossas listas insanas. Aprendemos a culpar o tempo, a exigir muito de nós mesmo. Nos tornamos seres de mentes cheias, e corações calados.
Aprendemos a organizar o que era de natureza caótica.
E assim nos poupamos. E assim ganhamos tempo nessa nossa vida tão curta. E assim nos tornamos cirurgiões plásticos de nossos sentimentos. E assim, ao lapidarmos os nossos próprios excessos e os descompassos, muitas vezes jogamos no lixo a habilidade de sonhar acima de tudo e apesar de tudo.
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