Todo dia aparece alguém querendo nos ensinar a viver. E como crianças bem educadas nos debruçamos sobre esses ensinamentos esperando aprender algo novo e útil capaz de renovar o brilho do nosso cotidiano.
Chega até nós agora o manual de arrumação da japonesa Marie Kondo, “A mágica da arrumação: a arte japonesa de colocar ordem na sua casa e na sua vida”. O título, quase tão longo e explicativo quanto um livro, seduziu milhões de pessoas no mundo inteiro ansiosas por transformar lares e vidas modestamente bagunçados em peças de design oriental.
E boa parte dos leitores já havia jogado no lixo mais da metade dos seus pertences, quando outra voz ergueu-se contestando o desapego. “Por que na vida deveríamos nos livrar de nossas coisas maravilhosas?” gritou Dominique Browning nas páginas do “The New York Times”.
Marie talvez possa ser considerada maníaca – aos 5 anos, em vez de brincar, arrumava os livros nas prateleiras da sua sala de aula – mas teve a sabedoria de usar a mania – chegou a desmaiar de angústia por não saber, exatamente, o que guardar e o que passar adiante- como ferramenta de afirmação e, por que não, de lucro.
Dominique é igualmente categórica, embora mais maleável: “Está na hora de celebrar a delicada arte da bagunça.”
Nós, colhidos entre as duas, temos direito de reivindicar a pluralidade.
Ordem ou desordem – ou acúmulo e desapego – não são somente uma atitude. São também uma tendência e o resultado de imposições sociais. São ligadas a circunstâncias biográficas e a contas bancárias. Têm a ver com cultura e clima.
Em recente viagem a Belo Horizonte ganhei um livro estupendo, “A arte de colecionar”. Páginas e páginas de conjuntos de objetos de determinado tipo. A coleção, entretanto, é apenas a forma mais sofisticada e artística do acúmulo. Conheço apartamentos submersos em corujas ou pinguins de geladeira, e me extasio na casa de meus amigos colecionadores de arte, onde não há centímetro de parede disponível. Um deles, ao não dispor mais de espaço, prendeu os quadros contra o teto. E nenhum colecionador para de adquirir novas peças.
Gente rica compra muito, e se desfaz de muita coisa. Gente pobre quase não compra, e não joga nada fora porque tudo pode vir a servir. Os novos ricos precisam exibir, e estão sempre em busca de elementos que testemunhem sua nova condição. A sociedade de consumo estimula o acúmulo e não o desapego, mas basta bater crise econômica para que pensemos mais antes de nos desfazer de qualquer coisa, e calculemos mais antes de comprá-la.
Marie nasceu para arrumar, assim como Dominique se sente mais à vontade em alguma “bagunça”. A ciência não garante, mas a observação nos diz que arrumação ou desordem vêm também no DNA. A educação conta, como em tudo, mas não é tão definitiva como as mães gostariam; vi crescer um casal de irmãos, ele desde sempre grande arrumador de suas gavetas e roupas, enquanto para ela bastava qualquer coisa em qualquer cabide.
Os povos nômades não poderiam juntar muitas coisas, mas juntam. Quem mora em espaço pequeno não deveria ter mais do que o essencial, mas tem. O despojamento – mais do que apenas a ordem – é um requinte que se alcança ou através da arte ou através da espiritualização. Ou mesmo através da mania.