A culpa acompanha marcadamente a humanidade – devem ter surgido juntas, inclusive -, marcando presença nas narrações míticas e mitológicas, nas lendas, romances, poemas, textos bíblicos, novelas, músicas, fatos históricos, filmes, seguindo firme em nosso dia-a-dia. O sentimento de culpa é onipresente, onipotente e onisciente, pois impregna nossa existência e nos remete a eventos significativos de nossas vidas, desde que nascemos até a nossa morte.
A culpa é o preço que pagamos por podermos escolher dentre as várias opções com as quais nos deparamos, continuamente, em casa, na escola, no trabalho, na rua, ao longo de nossas vidas, pela vida toda. A cada escolha que fazemos, deixamos para trás outras possibilidades, outros horizontes, outros caminhos, sendo inevitável, em algum ponto, questionarmos, cá com nossos botões, sobre se fizemos a escolha certa. E, fatalmente, haveremos de ficar imaginando como seria, onde e com quem estaríamos, em que trabalharíamos, caso tivéssemos optado por uma outra alternativa.
Inevitavelmente, a culpa traz consigo o remorso, um dos sentimentos mais cruéis dentre todos, pois parece que nada o alivia na sua forma latejante e ininterrupta de se instalar dentro de nós. De forma avassaladora, a culpa e o remorso podem devastar nossos sentidos e quase sempre vencer as batalhas que travamos na tentativa de neutralizá-los. Trata-se, pois, de uma luta diária.
Aquilo que deixamos de fazer, as palavras não ditas ou desditas, o não engolido, o sim forçado, a entrega duvidosa, o abraço recusado, o olhar desviado, o veneno experimentado, o mal destilado: teremos sempre muito do que nos arrepender, pelo resto de nossas vidas, afinal, por mais conquistas que obtivermos, por mais que estejamos felizes – ou não -, nossa vida poderia ter sido diferente; se melhor ou pior, não dá para saber. Porém, desejosos de sempre mais, acabamos, na maioria das vezes, tendendo a achar que, se tivéssemos agido de outra forma, estaríamos bem melhor.
O sentimento de culpa pode ser tão traiçoeiro, que consegue nos atingir em situações nas quais nem se sustenta – quantas vezes nos culpamos pelo que acontece a alguém, por conta do que ele próprio fez, quando na verdade aquele alguém colhe as consequências de tudo o que plantou, sem nossa interferência? Da mesma forma, diante de nossa impotência frente aos imprevistos da vida, por exemplo, como um acidente que tira a vida de um familiar, acabamos por procurar pela centelha de culpa nossa naquilo tudo. Parece que não nos conformamos com o fato de que sobre quase nada temos controle, ou seja, acabamos nos imbuindo de poderes mágicos sobre o curso da vida, atribuindo-nos uma força de controle inverídica sobre os destinos que nos rodeiam.
Logicamente, o sentimento de culpa também tem seu lado positivo, quando nos serve à reflexão sobre algo e consequente aprimoramento de nossos comportamentos. Sentirmos culpa por termos agido de determinada maneira pode nos ser benéfico, levando-nos a mudar nossas posturas e pontos de vista, tornando-nos melhores do que antes. Por isso, a culpa liberta quando ainda há tempo de mudar, de voltar atrás, pedir desculpas, mandar flores, telefonar, sorrir, abraçar e assumir o erro. Se, no entanto, o arrependimento relacionar-se a quem já morreu, já se mudou, já se casou com outro, já foi prejudicado demais, quando já for tarde demais, o remorso será nossa companhia ininterrupta e vencê-lo será árduo e doloroso.
Na verdade, deveríamos entender que agimos de acordo com o que somos e sentimos naquele momento, de acordo com a forma como nos situávamos frente àquele mundo, de acordo com a melodia de nossos sentimentos naquele contexto específico. Com o passar do tempo, a melodia muda, nós mudamos e não somos mais aquela pessoa lá atrás – brindemos a isso! -, pois avançamos junto com a dinâmica da vida. Mudam-se as estações, mudam-se as lutas, os sonhos, as canções. Mudamos eu, você, todo mundo e o mundo.
Impossível, aqui, não se lembrar de Peggy Sue, papel de Kathleen Turner, que tem a oportunidade de voltar no tempo e, com tudo o que sabe, ainda assim agir exatamente igual à primeira vez. Embora amadurecida, ela se reinstala num tempo e espaço em que inevitavelmente agiria como sempre o fizera. Retornaram as músicas, os cheiros, as pessoas, os amores, e Peggy Sue acabou sendo ela mesma em meio a tudo aquilo. Não, não teríamos agido diferente; lembremo-nos disso.
Se a culpa é inevitável, urge aprendermos a lidar com ela, de modo que, caso não a eliminemos, ao menos possamos conviver com sua presença, sem que nos machuquemos a ponto de interrompermos nossa progressão e nosso aprimoramento diário nessa jornada extensa que teremos pela frente. Imprescindível, nesse sentido, tentarmos enxergar claramente as culpas sem razão de ser, ponderando nosso papel no fato causador. Porque devemos ter a certeza de que, muitas vezes, a culpa não é nossa.
Sintomática dessa epifania necessária para que sigamos em frente, resignados e fortalecidos, é a cena em que a personagem de Matt Damon, Will, em “Gênio Indomável”, finalmente se liberta da culpa que carregava pelos maus tratos sofridos na infância, ao ser acuado pela repetição da seguinte frase do psicólogo, vivido por Robin Williams: “Não é sua culpa!” Somente após essa conscientização catártica é que ele pôde partir em busca da realização de seus sonhos, do desenvolvimento de seus potenciais. Essa cena vale o filme todo, pois retrata uma atitude que vale uma vida – a nossa vida!
Devemos, portanto, desatrelar de nossas vidas sentimentos que não nos dizem respeito e enfrentar as culpas e remorsos que valem a pena, que nos mobilizem em direção ao repensar, ao readequar-se, ao enriquecimento moral e ao melhoramento de nossas atitudes e comportamentos. Para tanto, temos de encarar corajosamente nossas angústias, adentrando essa escuridão dentro de nós, vasculhando-a com lucidez e livrando-nos dos pesos inúteis que emperram nosso caminhar. Libertar-se é preciso, para que se torne menos densa e assustadora essa carga de culpa e de remorso, a ponto de usarmos essas batalhas interiores em nosso favor, em prol do enfrentamento da vida em tudo de bom e ruim que há nessa lida.
Haveremos, enfim, de aprender com os erros – assumidos -, de agir enquanto tempo houver, de saber nos situar em relação às vidas alheias, de ter coragem de nos encarar em todo prazer e dor que nos definem. Trata-se de um exercício contínuo, diário, ininterrupto, pois, humanos que somos, erraremos muitas e muitas vezes. Porque, se errar é humano e culpar-se é inevitável, então batalhar é necessário e ser feliz é, no mínimo, o que merecemos.
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