Lições que aprendi com Rafaela, 3 anos de idade

Imagem: Yuliya Evstratenko/shutterstock

Eu não sei se você tem filhos pequenos. Eu tenho netos pequenos. E tenho a Rafaela, com 3 anos de idade.

De vez em quando sou surpreendida pelas lições de vida que as crianças me dão, assim de graça, aproveitando o fator surpresa do cotidiano.

Já se sabe que a criança é egoísta por natureza, e que nós, adultos, somos professores de generosidade das crianças, mas existe aquela hora inesperada em que os papeis se invertem, e o adulto recebe a aprendizagem da lógica infantil que ainda não conhece o mecanismo dos pensamentos estruturados.

Evidentemente, não espere teorias complexas ou didáticas planejadas. Não espere uma aula com pormenores completos e acabados. Aguarde por pinceladas de um olhar inaugural que renovarão a sua mente da mesmice dos pensamentos e dos olhares acostumados.

A aprendizagem acontece no susto. Ou na sutileza de uma revelação. Nada muito elaborado com princípio, meio, e fim. Mas se você acreditar no poder da sabedoria inata da criança poderá ser surpreendido por uma conclusão poética, chocante, original, magnânima, e um tanto quanto surreal.

Estávamos no parque. Enquanto ela balançava, docemente, e eu assistia, um pouco ausente, vieram à minha mente desejos de consumo, incompatíveis com a cidade onde moro. Uma danada de uma tristezinha crônica. Uma vontade de variar a rotina, com coisas que eu não podia.

Era sábado de manhã, e eu pensei que gostaria de fazer um programa cultural, no fim da tarde, mas infelizmente, a minha cidade de 20 mil habitantes não permite. Nem um cinema, nem um shopping com uma boa livraria, nem um único centro gastronômico para comer uma comida diferente. Nem praia, nem montanha, nem vales, nem rios, nem nada. Nadica de nada. Quase sempre não há nada para fazer aqui.

Eu queria muito saber o que qualquer pessoa me diria sobre uma vida sem lazer. Sobre anos sem lazer. Não havia ninguém comigo, mas havia a Rafaela. Perguntei:

– Rafaela, você gosta de morar aqui?
– Eu não moro aqui, eu moro na minha casa. – ela pensava que eu me referia ao parque.
– Eu quero saber se você gosta de morar nessa cidade.
– Eu não moro na cidade, eu moro na minha casa. Sabe aquela rua ali, – apontou com o dedo- você vai por ali, e tem aquela subida ali, e quando chegar ali em cima, tem a minha casa, é ali que eu moro.
-E você gosta de morar na sua casa?
-Eu gosto. Tem o papai, tem a mamãe, tem o Niko, tem a Nina, tem os meus brinquedos, tem o vovô, tem a vovó, tem tudo lá! Nessa lógica cartesiana tão real, fez-se a epifania.

Primeira lição: nós não moramos na cidade, moramos na casa.

A cidade não é mais importante do que a casa. A casa é o lugar que nos acolhe. Não é o teatro, não é o shopping, não é o parque, não é o restaurante, não é o cinema. O ponto estratégico do mapa que mais importa, o lugar para o qual voltamos, vezes seguidas, é a casa.

A casa é o lugar de voltar. Quem tem uma casa para voltar, tem um refúgio para se esconder, um local preparado para se abrigar do calor, do frio, do vento, da tempestade, dos perigos de um mundo hostil. Um lugar para descansar e estar em paz.

Ninguém mora na cidade, de maneira estrita. Moramos na casa, e, por isso, para o nosso bem estar, a cidade não pode ter importância maior do que a casa.

E quando digo “casa” agora penso no lar e nos afetos que ela abriga: a nossa família, os nossos gatos, os nossos cachorros, as nossas plantas, os nossos livros, os nossos temperos, as nossas benquerenças, e tudo o que é importante na rotina dos nossos dias.

De que me adiantaria morar em São Paulo, embaixo do Viaduto do Chá?
Ou em Nova York, sob uma marquize, na 5thAvenue?
Ou em Paris, na Champs Elysée, sob o Arco do Triunfo?
Ou em Madri, na Gran Via, na bifurcação mais famosa, entre as duas calçadas, ao relento?

Aprendi. Não posso esquecer o que aprendi. E se esquecer, preciso me lembrar de que não posso esquecer de me lembrar.

Em outra ocasião, Rafaela estava na escola, e o coleguinha mordeu-lhe o braço. Mordeu com tanta força que deixou uma marca roxa e a arcada dentária tatuada por vários dias. Parece que houve uma disputa por um brinquedo, e o imbróglio resultou nessa agressão.

Conheço a Rafaela. É portadora de uma agilidade de gato quando disputa algo do seu interesse. É irritante disputar com ela: eu perco todas! Só ganho na força, mas na agilidade, ela sempre ganha, e depois disso tenho que travar uma luta corporal para conseguir reaver o objeto proibido.

Com certeza, foi o que houve: irritou o menino até à sua capacidade máxima, e para não perder a disputa, o garotinho partiu para cima com a única arma que tinha: os dentes.

Mas, confesso: não gostei de vê-la com a marca no braço. Ficou uma dor funda. Cada vez que o meu olhar batia ali, eu sentia que, em algum momento da vida, ela precisou da minha proteção, e não encontrou. Para uma avó essa é uma falta imperdoável.

Perguntei o nome do agressor. Guardei. Odiei não o menino, mas a agressão. Fiquei ligeiramente indignada. Pensei: se depender de mim, quando for adulto, ele nunca se casará com ela, e se casar, o enquadro na Lei Maria da Penha, nem que seja daqui a 20 anos.

Alguns dias depois, marcas apagadas, Rafaela quis fazer a lista de convidados para a festa de terceiro aniversário. Peguei papel,
caneta, e disse: – pode falar.

Ela estava empolgadíssima por me ver anotando nome a nome. Quem foi o terceiro ou o quarto nome da lista da Rafaela? O agressor, o Mister Dentadura, aquele que eu gostaria de enquadrar na lei Maria da Penha.

Gritei horrorizada:
– Esse não!
– Esse sim, vovó, ele é meu amigo!
– Rafaela não foi esse que mordeu o seu braço?
– Foi, mas já sarou.
– Não interessa que já sarou, esse menino pode te morder de novo, fique longe dele, é melhor não convidar.
– Convido sim, vovó, ele não vai morder mais, ele é bonzinho, foi só aquela vez.

Segunda lição: Foi só aquela vez!

Guardadas as devidas proporções, errar é humano, mas perdoar é para sempre e eternamente, divino. Não apenas aos 3 anos, mas também aos 30, 40, 60, e 90. Um momento de cabeça quente, não pode ter força para apagar todos os bons momentos das vinte e quatro horas de um dia comum, de um mês comum, de um ano comum, de uma vida comum.

Se você “morder ou for mordida”, uma única vez, pratique o perdão, dê o perdão, receba o perdão.

Então, é isso: uma criança pode ser um anjo que Deus envia para nos ensinar a ser mais gente. Mas para aprender com uma criança, você precisa ter alguma experiência com o Deus das crianças.

É imprescindível ter canais abertos para captar a linguagem celestial que é fugaz como um relâmpago que brilha no limiar da consciência, e vai embora.

Pegou, pegou. Não pegou? Não pega mais. Não, naquele momento. Talvez, em outro, quando você estiver mais atenta e preparada para captar os instantâneos do céu.

Ana Maria Ribas Bernardelli

Estudante de humanas-idades, cidadã do céu e da terra, escritora por compulsão, leitora de letras, de pontos, de reticências, e de linhas, interventora de paisagens, solitária por opção, gregária por necessidade, gosto de músicas, filmes em que só as pessoas acontecem, documentários, biografias, e todas as obras de Clarice Lispector e de Watchman Nee. Vivo a espiritualidade, sem religião. Não tenho afinidades com rituais e com scripts que se repetem. Amo a liberdade, os animais, as plantas, os velhos, as crianças, e todos os seres que se sentem estranhos no ninho. Fujo de superficialidaes, e não tolero nenhum tipo de injustiça, crueldade, ou tirania. Adoro a Deus e a ele quero servir. Escrevo para organizar a vida, para aguentar o tranco, e em cada texto meu, você me encontrará. Espero que eu também lhe encontre no meu email, no meu site, e nos meus endereços nas redes sociais. Feliz por estar com vocês!

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