Por Ananda Martins
Minha bisavó morava em uma casa simples, mas encantada. Aos fundos, terreiro de terra batida, paredes descascadas e prateleiras de onde pendiam caldeirões ansiosos por comida quente. O fogão era à lenha, que ela mesma buscava e que temperava a comida cujo aroma abraçava a casa toda. Na última vez que a vi, estávamos na sala, os móveis antigos e o piso cansado, ela no sofá contando histórias e eu olhando aquela porta. Aberta o dia todo para quem quisesse entrar, a porta de contorno azul, que mais parecia moldura para o quadro que se formava da mistura de suas plantas com os raios de sol.
Com o cabelo de algodão e a pele feita de linhas, ela me disse do medo que tinha de esquecer os traços que fez. Talvez para não perdê-los, dividiu comigo uma história. Lembrou da época em que, de mãos dadas a outras mulheres, enfrentava a correnteza e atravessava o rio até chegar à praia do coração, onde molhava, ensaboava e depois estendia nas pedras as saias, blusas e vestidos, para que pegassem um pouquinho da luz do sol. Era ali, nas pedras do rio, lavando roupa e se banhando de água pura, que aquelas mulheres construíam um mundo secretamente delas.
Ainda cheios de água do rio, os olhos de minha bisavó voltaram-se ao presente. Ela levantou e caminhou bem devagar até o oratório, de onde pegou uma pedra, a única que guardava daqueles dias. A pedra passou a servir como castiçal (seu centro abrigava o espaço exato para uma fina vela de oração), mas era também o concreto objeto de suas recordações. “Recordar faz a gente feliz porque sabe que o que viveu foi bom”, disse ela com um olhar que eu já não sabia se estava no passado ou no presente, que mais parecia transcender os tempos.
Todo dia vovó Tana ia espreitar a vida da janela. Da janela viu o tempo fazendo os meninos crescerem, os velhos adormecerem, o tempo deixando a rua mudar, ser asfalto, muro, concreto, e nunca mais aquela da gente que andava com os pés descalços para alcançar o caminho do rio. O tempo, que fez do rio um dia seu e daquelas mulheres um lugar que agora só cabe na memória.
Um escritor de quem gosto muito e que vive em uma aldeia bem distante da nossa, disse um dia que o que mais lhe perturbava ao assistir o seu lugar mudar, era saber “que nossa vida era ainda mais frágil e transitória do que aquilo”1. O tempo corre, leva o rio, as casas e os jardins que percorreram nossa infância. Leva talvez um pouco muito importante de nós.
Eu mudei para uma cidade grande, onde os prédios, o asfalto e a imponência desmancham lugares de memórias que nos fizeram ser. Olhando a altura daqueles prédios, talvez eu tenha me esquecido de procurar, entre espaços, um azulejo desbotado ou um desenho antigo por trás da tinta nova, um pouco do chão onde pisaram avós e bisavós. Talvez tenha me faltado conversar um pouquinho mais com ela. Pelo menos mais uma única vez.
Em um tempo novo de acelerações (das máquinas, dos caminhos, da própria vida), vovó Tana ficou em seu lugar, vendo a vida passar através de sua janela. E foi lá que se tornou uma mulher sábia, que aprendeu e soube distribuir amor em gestos simples, não deixando sair de mãos e braços vazios quem em sua casa entrava, buscando um pouco de pão, um tanto de afeto. Na casa contornada de azul, floresceu um amor despido de teorias.
Casa que agora para mim ficará desbotada. Mesmo assim, quero que ela fique. Que não dê lugar a mais um edifício de apartamentos. Que se torne testemunho dos que vieram antes de nós. Que lembre a fragilidade da nossa condição e, ao mesmo tempo, a responsabilidade pelo que construímos. Que, através dela, tenhamos cuidado com a nossa história e possamos nos (re) conhecer. Sem atropelos, preservando e abrindo espaço para o novo.
Ananda, 19 de março de 2015
1 PAMUK, O. Incêdios e Ruínas. In: PAMUK, O. Outras cores: Ensaios e um conto. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 89-93.
Ananda Martins
Mineira, psicóloga, encantada pela escrita e fotografia enquanto formas de experimentação sensivelmente políticas do mundo.