Por Elika Takimoto
Ser machista no Brasil é como ser racista, ou seja, ninguém assume que é. No entanto, se perguntarmos para os negros se eles se sentem discriminados, eles dirão, em sua grande maioria, que sim. Se perguntarmos para as mulheres… o assunto fica por demais controverso. Poderia levantar a discussão sobre as mulheres que adoram andar ao lado de um ‘cavalheiro’, tomado aqui no sentido de querer dizer que elas se sentem bem ao caminhar não com um homem gentil e sim com um homem que a proteja e que a perceba como um ser frágil e inferior. Segue daí uma grande discussão, a começar pela dificuldade de diferenciar ‘machista’ de ‘cavalheiro’. Mas não é essa polêmica que quero aguçar. É uma outra. Esse texto é sobre uma determinada bandeira que levanto desde que soube que meu nome era Elika Takimoto. E vou teimar em hasteá-la porque insisto em querer construir uma sociedade mais igualitária, onde não precise ler quase todos os dias nos jornais casos de estupros, meninas com medo dos próprios colegas de escola, mulheres reféns dessa violência que por vezes acontece de forma silenciosa e burocrática.
Após ouvir vários homens casados que se dizem zero-machistas, perguntei-lhes: como é o sobrenome de sua esposa? Cem por cento dos casos, o marido diz naturalmente o sobrenome da cônjuge que é, vejam que interessante, o mesmo deste que se diz em posição igual a das mulheres.
Para começar, alguns detalhes da nossa história: o primeiro Código Civil Brasileiro (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), em sua redação original, pontuava, no artigo 240: “A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos de família”. Por “apelidos” entenda-se o sobrenome do marido, que poderia ser simples ou composto, ou seja, sua adoção era uma ‘obrigação’ da mulher. Tal obrigatoriedade significava uma afirmação do poder marital, da supremacia do varão, cuja origem vem do direito romano, em que a mulher ingressava na família do esposo. Esta adoção de nome era um costume a que a lei deu guarida, e devia ser compreendida como uma expressão da comunhão de vida entre os dois cônjuges. Que lindo.
Hoje, as coisas mudaram. Já não é mais obrigatório as mulheres adotarem o sobrenome dos maridos, embora muitos nem sequer saibam disso. Vale observar, trocar de identidade tem um significado forte subliminar: a mulher, literalmente, aceita perder a sua ‘identidade’ em prol de se fortalecer na nova família liderada pelo marido. Há meninas que irão dizer que é uma prova de amor, uma homenagem tal e qual uma tatuagem. Justamente, queridinha, o sobrenome do marido, que a esposa passa a usar, funciona como um carimbo a mostrar que ela tem um dono e senhor, tipo gado quando é comprado e marcado na pele as iniciais do fazendeiro ao qual passa a pertencer.
Ah, já estou ouvindo daqui você dizer que não fez isso pensando assim, que vocês se amavam, que no furor da paixão isso passou despercebido e que no frigir dos ovos você não tem culpa de nada, apenas fez o que manda o figurino e que, sim, não pode ser acusado de machista por isso. Mas saibam, vocês (homens e mulheres) que aceitam isso sem questionar, são sim machistas e têm tudo a ver com o que as mulheres sofrem hoje. Vocês também são responsáveis por esses tristes números que vemos nos jornais indicando a violência com pessoas do sexo feminino. Ignorar isto é fingir que o mundo é um conto de fadas e que os casamentos são todos como os que vemos na sessão da tarde. A relação homem-mulher é tensa, o conflito existe e ameaça e mata e estupra. Você que diz que nada tem a ver com isso está se esquivando de sua responsabilidade social adotando a posição cômoda zecapagodiana de deixar a vida lhe levar. Com exceção do Zeca, sabemos bem onde vai dar isso.
Acredito que este seja um caso em que nem a própria mulher reconhece sua condição de submissão. E entender essa situação, esse processo histórico, é uma característica, acredito eu, significativa para a superação da desigualdade. Não aceitar o sobrenome do marido é um caminho para se fortalecer como indivíduo independente, é manter a sua identidade, a sua completude. E saiba que esse caminho se faz não somente nessa atitude, no passado, digo, no ato do casamento civil, mas que ele precisa ser trilhado no dia-a-dia, constantemente, também no aqui e no agora. Diversas vezes, a título de exemplo e esclarecer o que estou querendo dizer, quando viajamos, eu e meu marido, preenchendo documentos de hotéis, perguntaram-nos: Mas vocês não são casados? Ou, então, já saíam tirando suas próprias conclusões: Pensei que vocês fossem casados! Na nossa Lua de Mel, vejam bem, o meu nome foi incluído em todas as fichas nos passeios como Elika Borges e eu tinha que pedir, exigir, implorar para que elas fossem refeitas. Ainda assim, chamavam-nos de casal Borges.
Embora insista que a identidade seja o ponto de referência a partir do qual surge o conceito e a imagem de si, sei muito bem que ela não é algo único e sim um sistema identificatório em processo dinâmico. Mas vamos ser sinceros com nós mesmos, de uma forma muito geral e bastante concreta, o nosso nome e sobrenome são mais que meras palavras escritas ou faladas. Eles estão direcionados a representar todo o nosso universo pessoal. Desde que os humanos passaram a denominar os objetos e situações, ainda na sociedade neandhertal, o nome passou a ser utilizado como uma identificação, uma forma de distinguir e individualizar uns dos outros. Assim, passou a ser considerado um determinante da personalidade, e, por isto, não é possível que alguém exista sem esta designação pessoal. Sem seu nome e seu sobrenome.
Mas sim, você pode querer não enxergar nada disso e achar que é só mais uma polêmica. Afinal, não foi você quem fez a lei. Entretanto, meu bem, se a seguiu, ainda que pudesse ter feito diferente, você tem sua parcela de contribuição com a violência que testemunhamos diariamente neste nosso país porque um tipo de preconceito muito danoso é este que não grita, age de forma silenciosa, sonsa e como se fosse natural. Diluído no dia a dia e em nossa cultura aparece como uma forma de manter a ordem das coisas e de lembrar quem manda. E quem obedece.
Não, senhores e senhoras, não estou querendo que vocês refaçam as suas identidades e as suas certidões de casamento. Mas pega mal dizer que vocês não são machistas se se recusam a enxergar que isso reflete toda uma história de discriminação com a mulher. Teimar em não se ver como machistas, à luz de tudo o que foi dito, é ser conivente com o estuprador que só enxerga, quando olha uma mulher, um objeto feito para lhe servir, submisso, descartável assim como um documento que não vale mais.
Sou Elika Takimoto. Sou livre dentro de um casamento. Aqui não encontrei nenhuma metade porque eu estou inteira. Sou e sempre fui, antes de tudo, fiel a mim mesma e aos meus ideais de justiça e igualdade.
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