Por Márcia Tiburi
Uma palavra e um gesto anacrônicos
Dizer amor em tempos de ódio é um gesto anacrônico. Um gesto inatual, fora de época. Portanto, um gesto que pode causar vergonha ou pelo menos inibição em quem se preocupa com a relação entre discurso e ação.
É o sentimento de inadequação diante da expressão do amor que está muito mais presente em nossas vidas atualmente. Quantas vezes não recuamos do desejo de manifestar amor por não saber como sua expressão pode ser recebida? Quantas vezes não o controlamos dentro de nós mesmos por achar que o amor não faz sentido? Pensar assim é inevitável quando todos nós estamos confusos com o que chamamos de amor porque a delicada planta do amor não anda tendo espaço para crescer nesse mundo em que a cultura do ódio avança tão rapidamente quanto o desmatamento da Floresta Amazônica, quanto a indústria bélica, o consumismo, os latifúndios, a economia dos ricos cada vez mais ricos, o autoritarismo…
Para bom entendedor, meia palavra basta, mas ela não tem sido a palavra amor. Quem diz amor se sente fora dos jogos de linguagem do nosso tempo. Isso quer dizer que a palavra e a coisa estão ligadas ao nível da ação, quem fala faz ou finge que faz. Por isso, também é possível falar amor da boca pra fora, como se pode dizer, correspondendo assim ao aniquilamento do amor por esvaziamento, algo tão desejável em nossa época que elogia a palavra amor apenas quando ela é transformada em balão de ar.
Fácil acabar com o amor quando o transformamos em um efêmero sopro de voz. “Fragmentos de um discurso Amoroso” de Roland Barthes talvez nos ajude a pensar nisso quando se propõe a ser mais a enunciação do amor do que um livro de análise sobre o amor. Talvez que o autor de um discurso amoroso que ande por aí não deva se calar, mas inevitavelmente terá que rever o que diz para poder expressar aquela parte do amor que não pode ser dita e que é a única que vale a pena dizer. (Quando vejo o livro de Barthes nas mãos de gente jovem, sei que estão apaixonados pela primeira vez e o leem porque o amor é algo tão estranho que precisa ser estudado para ser suportado…).
Nosso tempo se contenta com o efêmero sopro de voz e condena à morte a substância delicada e ao mesmo tempo densa que está contida no amor. Amor é, afinal, o nome de alguma coisa que deveria ser pronunciada com muito cuidado. Pois que se mata um Deus quando se diz o seu nome em vão. E é por isso mesmo que dizer “amor” hoje, quando se pode dizê-lo honestamente, porque seria bom que ele existisse, e não apenas porque se acredita que ele exista, pode ser um ato de redenção (naquele absurdo sentido de que podemos praticar o gesto impossível de salvar até mesmo os mortos da injustiça…). E, como tal, um ato de revolução, no seu sentido concreto, aquele ato que nos conecta com a tradição dos oprimidos de que falava alguém como Benjamin, um filósofo que, em um tempo sombrio que ainda é o nosso, lançou luzes no fim de um túnel sem fim…
O amor é histórico
O amor tornou-se a palavra que facilmente acoberta seu próprio contrário. Teríamos que fazer sua anamnese, lembrando que o amor é histórico, que é uma ideia tão boa quando perigosa. Remédio e veneno ao mesmo tempo. Talvez não exista palavra mais contraditória ou mais astuciosa para garantir desvios necessários: os que falam em nome do amor muitas vezes o falsificam com seu próprio nome. O ódio infelizmente é sempre verdadeiro.
A palavra, como toda palavra carregada de uma beleza ideal, pode servir para acobertar seu contrário. Mas isso apenas quando o amor virou peça retórica como se faz com outras palavras. Prestemos atenção em como os autoritários adoram a palavra democracia, como os violentos usam cinicamente a palavra paz…
Mas quem fala do amor também pode estar, de algum modo, fora da ordem seja por adocicá-lo no sentimentalismo publicitário que vende coisas por meio de sensações e simulacões de sentimentos, seja por intensificá-lo na paixão amorosa possessiva e cruel que leva a crimes, a maldades de todo tipo que amantes praticam uns contra os outros. Lembremos que o amor romântico até hoje fez muitas vítimas porque, por mais belo e aconchegante que possa ser, ele sempre teve um preço. As mulheres sempre o pagaram enquanto foram, com seu próprio corpo, alma e ação, ao mesmo tempo, a moeda. O amor romântico estabeleceu-se a partir de raízes intimamente ligadas à misoginia. Mas lembremos ainda que pais e filhos também praticam muito desamor sob a cortina de fumaça da palavra amor. O amor, se não for mediado por algo que poderíamos chamar de “reflexão amorosa”, um estado de constante reflexão ética sobre o que fazemos em seu nome, é um grande perigo na vida das pessoas, pois se presta a toda forma de engodo.
Eu te amo
Fato é que a palavra ficou gasta em meio a tantas contradições e não podemos mais pronunciá-la honestamente. Quem hoje em dia pode dizer “eu te amo” sinceramente e não desconfiar de um cinismo que não se deixa medir? O amor virou uma mercadoria das mais baratas no mercado das relações humanas. Poetas honestos não tem mais coragem de usá-la. Do mesmo modo, amantes honestos, paradoxalmente, não se comprometem mais com ela. Os escolados na falsidade diária dos relacionamentos sabem que “eu te amo” é sinal de alerta para a mentira. A expressão gastou-se sem que tenha atingido sua própria verdade e serve para colocar o vazio do eu, sua inexpressão repetitiva, em cena. Ao dizer eu te amo, acreditamos que fazemos alguma coisa importante. Emitimos um conteúdo. Mas será mesmo?
Por isso, talvez seja bem mais honesto dar lugar entre nós a outros sentimentos menos pretensiosos como, por exemplo, o respeito. A justiça que se assemelha ao amor por sua condição de impossibilidade talvez seja muito menos impossível e faça mais sentido.
Talvez que, ao usar menos o termo amor, atualizando-o com menos eloquência por meio de outras palavras, estejamos praticando mais amor.
O amor é a descoberta do outro
E ainda assim o amor não pode ser jogado fora. Embora se trate, no seu caso, de algo de fato impossível, a antecipação prática desse ideal melhora o mundo. Torna esse mundo menos inóspito, menos cruel. O amor é assim um gesto negativo da ordem injusta do mundo. Talvez fosse essa a mensagem contida há tanto tempo no diálogo de Platão chamado O Banquete no qual vários filósofos e homens do seu tempo discutem o amor sem que nenhum deles consiga atingir uma definição perfeita. As mulheres não estavam ali não apenas pela habitual misoginia dos filosófos, mas porque o amor também não estava ali e os homens ali presentes não eram capazes de entrar em contato com essa grande figura da alteridade representada pelas mulheres e pelo amor. Sócrates é quem chama à memória a explicação de Diotima, uma sacerdotisa, ou seja, alguém que entra em contato com um deus, quem não poderia estar entre os meros mortais. O amor surgia nas palavras de Diotima como o desejo de alguma coisa que não estava presente, algo outro, algo que não estava jamais expresso e que nos chamaria para fora da experiência habitual. Levando a sério o que disse Diotima, o amor seria irrepresentável. E Sócrates sabia disso.
O que quer dizer que nunca estamos falando de amor quando falamos de amor. O que vale então para os pobres mortais é o desejo de amor. É o amor que queremos.
Ora o que é o amor senão o desafio da alteridade? Seja político, ético ou estético, esse desafio é o do encontro com o que não somos, com o estranho, com o que não se submete à nossa compreensão limitada, com o que não estamos acostumados. Certamente não pensamos que o amor seja hoje um desafio em sentido algum e é mais certo ainda que para este desafio não possamos nos preparar, pois não há mais tempo reservado para algo tão inútil. Não é assim que pensamos?
Pois é assim que, devorados pelo ódio que está na base do utilitarismo, o amor acaba.
Amour
Por isso, penso muito mais nas “provas do amor” do que nas palavras do amor. Para salvar o amor teríamos que dar provas e essas provas hoje são políticas e éticas, são provas que envolvem nossa razão e nossa emoção, provas que, pela ação, pudessem nos salvar de nosso caos cognitivo e afetivo.
Essas provas precisariam ser concretamente amorosas. Precisariam ser mais do que discurso, mais do que palavras ao vento como folhas de uma árvore morta que demoramos a perceber que morreu.
Lembro de Amour, o filme de Michael Haneke que assisti em 2012. Depois desse filme fui ao cinema poucas vezes. Por meses tentei juntar os cacos da razão e da emoção que tinham sobrado da experiência. O filme de Haneke expressa muitas questões fundamentais sobre o amor, fala do amor, é o amor. Mas há uma questão bem simples e séria que nos servirá pra sempre: o amor nunca será fácil e provavelmente nunca combinará com o mundo que se entende com as coisas fáceis.
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