Malévola não é exatamente um conto de fadas ou uma produção mítica a priori, mas como qualquer produção artística e cinematográfica, ela pode ser considerada um produto da psique pessoal e coletiva, dada a sensibilidade das pessoas que captam os conteúdos do inconsciente e os representam na forma de imagens.
Os contos de fadas traduzem a realidade psíquica e falam sobre o que está acontecendo numa comunidade em uma determinada época, transmitindo quais os valores que precisam ser integrados na consciência. É com este olhar que precisaremos refletir sobre Malévola e sua trama: uma história que nitidamente trata da questão do Feminino em tempos de dominância Patriarcal.
A narrativa enfoca um ponto até então deixado de lado na história da Bela Adormecida: quem era a fada má que lança o feitiço na pequena filha do rei durante seu batizado.
Malevóla e Aurora são as protagonistas da história e o que a acontecerá com ambas mudará o destino dos dois reinos para sempre.
Num mundo dividido entre masculino e feminino, consciente e inconsciente, “Reino dos Homens” e “Reino dos Moors” (pântanos), o encontro entre duas crianças inicia a trajetória rumo a individuação ou a loucura.
Ainda na infância, Stefan adentra o mundo dos Moors e de lá tenta roubar uma joia preciosa. É barrado pelas entidades que lá vivem até a chegada da guardiã do reino, a pequena Malévola. O encontro marca o início do que seria, a princípio, uma grande amizade.
Moors simboliza o Reino da natureza inconsciente, matriarcal e feminina. Mundo mágico cujo simbolismo da lama se faz presente, indicando que se trata de uma terra fecunda, cujo princípio receptivo é dinâmico e gerador de evolução. Mas que, pela mistura da terra com a água, pode também caminhar para a involução e estagnação. Assim, se aquilo que está no inconsciente não for ativado e estimulado, a transformação e o processo de amadurecimento não poderão acontecer.
Essa possibilidade se faz com a chegada de Stefan (entrada do masculino) no Reino mágico, da amizade entre eles, do processo de apaixonamento de Malévola e de todo o posterior desenrolar da trama. Até a vinda Stefan, a vida de Malévola caminhava sem mudanças, sem conflitos e protegida do reino dos Homens. Ela fica curiosa e quer se aproximar do menino e assim, se entrega à experiência. Sem conflito não há crescimento, e se a história não tivesse enveredado pelos caminhos do destino, a possibilidade de integração da qual fala o filme não ocorreria.
Em relação a figura da Malévola podemos fazer muitas ampliações. A personagem é caracterizada com dois atributos supranaturais que nos chamam a atenção: os chifres e as asas.
Suas asas simbolizam a possibilidade de alçar voos, a liberdade, a autonomia, a leveza, a elevação e seu aspecto divino.
Os chifres, que remetem as figuras míticas de Dioníso (gregos e romanos), Isís (egípcios) e ao Diabo (cristão), dão a ela uma postura eminente e elevada. Símbolo de poder, força e agressividade. Em seu aspecto positivo atem-se à fecundidade, à força vital e à vida inesgotável. Em seu lado negativo simboliza a defesa, a destrutividade, o combate e o mal. Símbolo ambivalente que integra as forças do masculino e do feminino, seja por sua capacidade de penetração ou por sua abertura em forma de receptáculo. Assim, os chifres de Malévola se tornam o símbolo da necessidade da união e integração desses dois princípios para a formação da personalidade e para o alcance do equilíbrio e da harmonia.
Seu nome por si só já remete àquela que faz o mal. O que também enfatiza o modo como as formas da natureza e do feminino são tratadas dentro do modelo patriarcal negativo. Porém, o único mal que Malévola comete de maneira destrutiva e não defensiva é o feitiço que coloca em Aurora.
Malévola e Stefan crescem. Os mundos continuam divididos e após o primeiro beijo entre Malévola e Stefan, as próximas cenas mostram o afastamento do rapaz. Stefan trabalha dentro do castelo e com o passar do tempo, segue dominado pelas forças de seu próprio mundo.
O Rei quer destruir o reino de Malévola e se apossar dos Moors. A guerra é travada e ele perde pois as forças da Guardiã e de seu reino são brutalmente maiores do que as dos homens. Tal fato remete à força do inconsciente e à impossibilidade do ego de querer tomar posse do controle da psique como um todo.
Após o conflito, no mundo dos Homens, o Rei, ferido por Malévola, está adoecendo, o que mostra o enfraquecimento do domínio das forças patriarcais vigentes. Ele nega a natureza do Inconsciente, com quem luta e tenta destruir. Neste reino as mulheres não tinham lugar, o que denota um reinado unilateral, cindido e em que as forças do feminino eram reprimidas e não encontravam vias criativas de expressão.
O Rei quer a morte de Malévola e promete o reino àquele que conseguir realizar tal tarefa. Stefan ouve tudo e tomado pela possibilidade de poder planeja o atentado contra ela. Ele a chama, seduz, e com o uso de uma poção narcótica, a faz dormir, mas não consegue mata-la.
Malévola acorda com suas asas cortadas. Sente a dor da liberdade ceifada justamente por aquele em que ela confiou. Podemos aqui fazer a relação com as mulheres que confiam cegamente nas figuras masculinas que depois às decepcionam brutalmente.
Como cita Leda Seixas, “quem confia cegamente não enxerga nada e pode perder suas asas!”
Ceifar as asas significa podar o aspecto divino e com isso, sua força e seu poder. Lembramos aqui de Lúcifer, o anjo caído que assume características sombrias e se torna a personificação do mal e da destrutividade.
Malévola se sente traída. Os conteúdos que queriam se aproximar e serem integrados na consciência, são cortados, podados E isso desperta nela terríveis sentimentos, que vão da depressão à fúria e à necessidade de vingança. O matriarcal positivo, que nutre e cuida do reino, transforma-se na sua pior versão. Desperta o lado negativo da Grande-Mãe, e com isso, o anterior potencial de transformação do feminino através do amor romântico, agora reprimido, passa a ser fixado na Sombra, assumindo a forma defensiva e negativa do arquétipo.
Na sua nova condição Malévola, agora fadada a ter que caminhar pelas vias terrestres, transforma um galho em um cetro, o qual funciona como uma extensão dos braços, simbolizando o novo poder, a nova força e a autoridade, agora sombrias. Todo o Reino dos Moors escurece e perde a vitalidade de outrora, reagindo sintonicamente ao estado de humor da sua guardiã.
Ela elege o Corvo para ser sua “nova asa”. O corvo ganhou simbologia negativa por ser a ave que planava sobre os campos de batalha na Europa após os combates de guerra. No seu aspecto positivo este pássaro é tido como mensageiro divino, símbolo de triunfo e perspicácia. No Gênesis, por exemplo, o corvo é o primeiro animal que retorna anunciando que havia terra à vista após o dilúvio. Nas lendas celtas ele tem papel profético e na Grécia ele é consagrado a Apolo e tem o papel de mensageiro dos deuses.
Assim, o corvo simboliza a ponte entre Malévola e o mundo dos Homens, aquele que penetra na sombra sem se perder. Ele permanece com sua consciência organizada e não se envolve diretamente nos sentimentos de Malévola. Ele a auxilia por ter prometido servi-la após ter sido salvo, é seu informante e se torna seus olhos, seus ouvidos e suas asas no mundo dos homens. Acompanha a guardiã em sua jornada, aconselha-a, e mais para frente, cuida da pequena Aurora no que diz respeito às funções maternas práticas que as pequenas fadas não conseguem desempenhar.
Diaval (o corvo) chega com a notícia que Stefan se tornou o Rei e então Malévola descobre porque ele cortou suas asas. Enfurece-se e decide se vingar quando ele tem sua primeira filha: Aurora.
O padrão de comportamento expressado por Malévola revela que ela não tem os recursos necessários para elaborar e digerir sua frustração e perda, sem conseguir assumir que fora ingênua ao confiar em Stefan. E, por isso, precisa lançar de uma vingança contra aquele que a decepcionou profundamente. Sua forma de fazer justiça é a punição. E por isso ela atinge Aurora. Ela saberia que atingiria Stefan justamente no ponto em que foi traída: no amor!
Aurora vai ser batizada! Momento que indica a transição, símbolo da cristianização, e da entrada no modelo patriarcal vigente no Reino dos Homens.
O feitiço é lançado para que a menina entre em sono profundo aos 16 anos, na mesma idade em que Malevóla foi beijada por Stefan pela primeira vez e em que achava ter encontrado o amor verdadeiro mas, foi enganada. Assim, acredita que seu feitiço é indestrutível por não mais confiar nesse sentimento.
Mas, quando lança o feitiço em Aurora, Malévola já se compromete, pois ao mesmo tempo que roga a praga mortal, diz que todos que conhecerem a princesa, a amarão. Neste momento, a guardiã enfurecida, já se enterneceu pela bela menina.
Stefan, preso ao desespero e a ambição, entrega Aurora às três pequenas e desastradas fadas, na tentativa de impedir a realização do feitiço lançado contra ela. Segundo Chevalier, “costuma-se recorrer as fadas e às suas operações mágicas na medida em que não se romperam os laços das ambições desmedidas”.
As fadinhas da trama são imaturas, atrapalhadas, seres elementares integrados à natureza. Símbolos do inconsciente, que não conseguem se estruturar sem uma força que lhes digam o que fazer.
Deste modo, Aurora nasce numa família disfuncional e cresce sob os cuidados dos aspectos da Sombra (Malévola e Diaval), com os quais entra em contato desde menina. Há de se ter resiliência!
Enquanto isso, Malévola e Stefan usam os mesmos recursos para atacar e se defender: um escudo de espinhos.
Mas, ao acompanhar o crescimento da pequena princesa, Malévola, embora sem admitir, não consegue impedir seu amor pela pricesinha. A menina cresce e, curiosa, quer saber o que existe por trás do muro de espinhos próximo a sua casa. Elas se um dia se encontram, e a Aurora é apresentada ao Reino dos Moors, com o qual se encanta.
Malévola revive com Aurora o afeto e arrepende-se de ter lançado a praga sobre a menina. Porém ela não consegue desfazer o feitiço, porque tanta energia não pode ser retirada, só transformada.
Aurora não fica morando com Malévola, o que simbolizaria a imersão no mundo do inconsciente e a impossibilidade de transformação. Assim, com 16 anos a menina segue ao encontro do seu destino. Descobre sua história e também quem é realmente Malévola. No caminho de volta para o Reino dos Homens conhece Felipe, príncipe de um reino vizinho, conhece seu pai e espeta o dedo na Roca de fiar.
A roca de fiar é mais um símbolo que integra aspectos do feminino e do masculino. A roda, remete ao feminino e já o fuso é um elemento masculino, que penetra e fura. A roca também remete à roda da fortuna, do tempo e às três moiras, conhecidas por tecer o fio da vida da humanidade. Senhoras do destino, da vida e da morte. Tudo aquilo que corta, perfura e penetra é também símbolo de discriminação que possibilita a transformação.
Quando Aurora descobre esse poder e poderia então ser mais assertiva em relação ao mundo, ela cai no sono profundo do feitiço.
Malévola se vê impelida a entrar no castelo para salvar Aurora. Acredita que o jovem príncipe possa ser a solução. Mas, o beijo do jovem mostra que o amor romântico faz parte mas, não precisa ser o final feliz. Há outras possibilidades de transformação.
E assim, Malévola descobre o amor verdadeiro através da jovem Aurora. Felizes elas tentam sair do castelo, mas a emboscada já estava armada por Stefan. O ferro, elemento venenoso para a fadas, já estava sendo fundido há tempos para destruí-la.
Ferro simboliza a robustez, a dureza, a obstinação e inflexibilidade. Em sua ambivalência, ao mesmo tempo que protege contra as consideradas más influências e é instrumento dessas mesmas influências destrutivas, levando à guerra e à morte.
Para não ser aniquilada pelos homens, Malévola transforma o Diaval (o corvo) em Dragão, aspecto que revela mais uma vez sua natureza, soltando sua fúria contra o masculino repressor. Resumidamente, o dragão, possui simbolismo semelhante ao da serpente, é o guardião dos tesouros ocultos em muitos mitos e representa a força primordial da natureza. Associado ao elemento fogo, tem também simbologia ligada à renovação e à transformação, ao mesmo tempo que pode ser mortal e destrutivo.
É por amor que Málevola liberta Aurora, e é o amor da jovem que devolve as Asas para sua mãe-madrasta-fada madrinha!
Ao recuperar suas asas Malévola pode se elevar novamente e finalmente se desvencilhar do conflito ao qual estava enredada. Isso só pôde ocorrer após Malévola enfrentar diretamente o conflito, entrar no mundo dos homens para salvar Aurora e ser transformada pelo amor verdadeiro.
Ela vê voltar suas forças e recupera o aspecto positivo de sua divindade. Arrasta Stefan com ela. Insiste que para ela o conflito chegou ao fim. Mas para ele não! Tomado pelo ódio e pela loucura Stefan morre.
Stefan fica enredado na vingança contra as forças da natureza feminina de Malévola, obcecado por sua posição unilateral, esquecesse de tudo, enlouquece, sua personalidade se torna delirante e paranoica. Na primeira e na última vez que Stefan entra no reino do Moors é para retirar algo e não para ser transformado pelo reino mágico e alcançar uma nova integração da consciência. Fica perdido nas forças do inconsciente. A impossibilidade de integração o leva a morte, a aniquilação. Na psique, a morte de Stefan, remete a morte do Ego inflado, doentio e que acreditava ser o centro da personalidade. O Ego não é o Rei e o Castelo não é o Centro!
Aurora simboliza o novo dia, a nova vida e a nova consciência. A possibilidade de unificação do que antes era indiferenciado, cindido e inconsciente. E quando um arquétipo emerge do inconsciente para a consciência isso se faz para homens e mulheres. Ela é também é símbolo da criança divina, representante de todo o potencial a ser integrado na consciência e que segundo, C. G. Jung “trata-se de uma representação do “sopro divino”, de uma integração com a natureza, de um saber direto, intuitivo”.
O amor verdadeiro entre Malévola e Aurora permite a reintegração do feminino. Recuperam-se as asas da liberdade, da autonomia, da leveza e da alegria. Malévola agora transformada e amadurecida pode, juntamente com Aurora unir os dois reinos.
O mundo dos Moors volta à vida e a guardiã elege Aurora para reinar sobre ele, simbolizando o início de um novo padrão de consciência relacionado a integração das forças do feminino e a alteridade como novo modelo de relação.
Toda essa estória nos faz pensar que nossa cultura e sociedade também está precisando dessa transformação! E como aponta Leda Seixas: “cada um tem que cuidar do seu próprio desenvolvimento. O único jeito de transformarmos o mundo é transformando a nós mesmos! “
Por Marcela Alice Bianco
Comissão Organizadora Cine Sedes Jung e Corpo
Este texto foi produzido pela Comissão Organizadora do Cine Sedes Jung e Corpo com base nas reflexões realizadas durante o evento realizado em Junho de 2015, com os comentários da Professora Leda P. Seixas e das PsicólogasBruna Arakaki e Mariana Farinas.
O Cine Sedes Jung e Corpo é uma atividade extracurricular do curso Jung e Corpo: Especialização em Psicoterapia Analítica e Abordagem Corporal do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo.
É um evento gratuito e aberto ao público geral organizado pelos professores do curso em conjunto com ex-alunos e ocorre todas as últimas sextas-feiras dos meses letivos do curso.
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