Mamedjane, um conto moçambicano

Por Hirondina Joshua

Levantou os olhos como se alcançasse o céu. Sua felicidade atingia o mar, o movimento das ondas, o brilho do dia, a cor das plantas, toda uma beleza natural nela se fazia em metamorfose. Ia casar. Ia mudar de vida e ter a sua própria família. Ia ser outra neste espaço sem lugar.

Nas vésperas do seu casamento, Mbale não se bastando do presente e dos conselhos dados pela mãe pôs-se a fazer um pedido, queria um presente não surpresa como o que recebera, mas um proposto por ela. O que Mbale pediu foi de assustar mesmo muito singular, de arrepeiar as veias da mente.

Ela pediu uma cabra, sim… uma cabrita. Mas o que uma cabra podia mudar na sua vida? Que de diferente podia ter isso?

Para a mãe da Mbale isso era radicalmente diferente, era o mesmo que lhe pedir ouro em estado animal ou mágico se prefirirem. Esse pedido foi extremamente ousado para o entender dela.

–”O quê?! … Tu sabes que a Mamedjane é como se fosse minha filha. Não a quero perder principalmente agora que te vais embora.” –Disse a mãe da Mbale.

Mamedjane era a cabra. Ela é que fazia todos os trabalhos domésticos e era a melhor companheira da mãe da Mbale. Linda, de cores nunca antes vistas, uma verdadeira harmonia celestial. Para além da beleza extra  gozava igualmente de  uma outra; a intra essa que descrevia o Ser de Mamedjane por completo, conquistava o mundo dentro de um um outro mundo,  qualquer um que se fizesse perto dela; arrancava-se a razão, muito apesar de que isso nunca se tenha vindo a suceder (estar perto dela).

–”Mamedjane não pode ser vista por ninguém…” –Comentou a mãe, por saber que Mamedjane era uma “cabrita mágica”, e seria um verdadeiro escândalo se a vissem.
Todos que visitavam a casa da Mbale nunca a viram. Mamedjane vivia no mato perto da casa. Na verdade, não vivia morava no mato. Mamedjane vivia mesmo era no seu interior, rodeiada da humana-animal que era. Mamedjane se parecia com ela mesma.

Chegou o dia do casamento, e Mbale suplicou, pediu de  joelhos a Mamedjane.
–”Por favor dê–me a …sabe que não cozinho bem ainda, e lá no meu lar há muita coisa por fazer…muitos trabalhos domésticos… por favor  não quero passar vergonha, não quero perder o lar…” – Disse Mbale disse lacrimejando.

–”Está bem…dar–te–ei…mas com uma condição: Mamedjane não ficará todo o dia com contigo, trabalhará até ao meio–dia, e não deixes que alguém a veja por nada, ouviste bem?… Prometa–me…prometa–me isso”. –Disse a mãe de Mbale.
E Mbale prometeu cumprir com a promessa.

 Assim já tinha quem lhe ajudasse nas tarefas domésticas do lar.
“Ghu…ghu…ghu”, chegava a cabra na casa da família Mhuhere.

–”Hiiiii… é uma cabra, olha a cabra com a lenha na cabeça” –Dizia uma criança chamando as outras. Enquanto isso Mamedjane descarregava a lenha atrás da casa.

Todas as crianças aproximaram–se ao redor de Mamedjane, obeservando–a admirando a situação.
Todos os dias Mbale acordava para ir à machamba e quando voltasse não mais se preocupava com nenhum trabalho caseiro. Pois Mamedjane já os tinha feito todos. Mamedjane cartava água, arrumava a casa, recolhia lenha, e pilava.

Mbale encontrava tudo feito. Todos os dias Mamedjane descarregava lenha atrás da casa. E sempre que fizesse isso era vista pelas crianças da família Mhuhere.
Passado algum tempo ela já era conhecida por todas crianças. A alegria e simpatia de Mamedjane eram radiantes, enfeitiçava qualquer um.

Mamedjane conversava muito, cantava, ria, contava estórias, enfim… era uma óptima amiga. As crianças gostavam tanto da sua canção que nalgumas vezes davam–lhe comida para que Mamedjane cantasse para elas.

–”Mamedjane, canta para nós! Leva esta manga e este pedaço de xima” –Pedia uma criança.
Mamedjane cantava e dançava mas não parava de fazer os seus trabalhos. Enquanto cantava, as crianças aplaudiam radiantes de alegria…

Dias alegres passavam Mamedjane e as crianças naquela casa. De nenhuma maneira o marido de Mbale deveria descobrir, senão se separava dela.

Dias passaram…passaram dias… e organizou–se uma festa na casa da família Mhuhere. E como era normal e habitual as mulheres da família tinham que trabalhar triplicamente nos dias de festa. E Mbale quis poupar esforços, usando a Mamedjane para trabalhar nos preparativos da festa (como sempre faziam os trabalhos quando todos estivessem na machamba).
Já se tinha feito todas as compras: bebidas, comidas, roupas… pois era uma festa de convívio. Havia muito milho por pilar… . Enquanto Mbale ia à machamba, Mamedjane fazia parte dela nos  preparativos da festa. Mbale foi ao mato onde vivia Mamedjane avisar para que Mamedjane não fosse trabalhar no dia da festa.
–”Como já sabes, amanhã teremos festa,  trouxe comida e bebida já que não deves vir porque ninguém te pode ver. Fiz a questão de seleccionar as melhores partes das comidas e bebidas para ti”. –Explicou Mbale.
Feito isto, Mamedjane deciciu fazer a festa na sua “casa”, começou então a comer e beber. Bebeu…bebeu…bebeu… embriagou tudo que podia.  Mamedjane não resistiu a bebida que se encontrava nos potes, aliás a bebida é que não a resistiu e, a bebeu primeiro, num acto assim: metido na vontade quase confundido com tudo que é  inabalável, humano e mundano e insano.

Uma das crianças da família Mhuhere, deixou escapar contando ao pai tudo que acontecia quando ele se encontrava ausente.

–”Pai quando não estás cá em casa vem uma cabra descarregar lenha atrás da casa, e ainda por cima ela faz  todos trabalhos domésticos”. –Contou uma das  crianças, de forma ingénua.

–”O quê?…Que estória é essa? Deves estar a delirar” –Respondeu o pai.

–”Ė verdade pai… ” Insistiu a criança e o pai continuava a não acreditar, pensado que aquilo era apenas uma imaginação infantil.

No dia seguinte, o Sol acordou mais belo que nunca antes tinha se visto. A anunciar a grande  e esperada festa na família Mhuhere. Galinhas, vacas, bebidas…e muito mais eram transportados de um lado para o outro.

A correria era intensa, e até se podia ver poeira em todo o quintal. O barulho era mais do que sons gritantes. Muita dança e cantoria faziam–se sentir, a casa estava completamente em orgia.

No meio daqueles tumultos apareceu Mamedjane com lenha nas costas como era habitual, descarregou atrás da casa, só que desta vez todo o mundo estava a ver.

Mamedjane não perdeu tempo, foi levar o pilão e começou a pilar, a cantar … e a rir.

As crianças que lá estavam começaram a saltar de alegria ao ver a sua querida amiga. Puseram–se então a cantar a famosa canção de Mamedjane:

Oooh…Gumba nhfuuu…
Vha ca Mhuhere gumba nhfuuu…
Va hê mhacinwine gumba nhfuuu…

Tradução:

Oooh… (som do pilar)

A família Mhuhere… (som do pilar)

Foi à machamba… (som do pilar)

Aquilo foi um autêntico escândalo. Ver uma cabra a pilar e cantar! E ainda por cima embriagada… Não é normal. E é quase inacreditável.

–” Olhem…olhem…é uma ca…cab…cabra… a pilar…”
–”Que tipo de feitiçaria é essa?” Gritavam e comentavam apavoradas as pessoas.
O mais engraçado de tudo isto foi toda a gente ver que Mamedjane era conhecida por todas as crianças da família.
O marido da Mbale não levou tempo com a sua arma de caça  Bhum…bhum…bhum…atirou no animal matando–o.
Isso era a última coisa que não devia ter acontecido à Mamedjane.
Mbale desesperou–se, pois, já tinha perdido a Mamedjane e não tinha conseguido cumprir com a promessa da sua mãe. Do lado de fora podia-se ouvir alto:
–”Leva o teu animal e SAIA JÁÁA daqui…SUA PREGUIÇOSA…afinal casei–me com quem, contigo ou com a tua cabra?”

Enquanto isso um outro lado se abria dentro dela para que se ouvissem outras vozes: a da dor gritada pelo olhar; e da lágrima num silêncio…

Quadro do pintor Norberto Geraldes

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Hirondina Joshua

Nasceu em Maputo, Moçambique, a 31 de Maio de 1987.
Está integrada em várias antologias, revistas, jornais, sites, blogues nacionais e internacionais. Teve Menção Extraordinária no Premio Mundiale di Poesia Nósside 2014.

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