Não assumimos a real natureza do descontentamento. Procuramos disfarçar o motivo da reclamação, o que confunde quem está ao nosso lado.
Não ensinamos o que não gostamos. Não nos mostramos óbvios, diretos e acessíveis. É ficar magoado por uma situação e encontrar uma próxima para procurar briga.
É não dizer na hora o que dói e achar pretextos absolutamente desconexos e posteriores com o que gerou a raiva.
A escola da dissimulação é estabelecida na infância, quando não revelamos as nossas molecagens, fugimos dos castigos, transferimos a culpa para os irmãos e colegas.
Somos educados a trancar as vontades e despistar os desejos.
Camuflamos, omitimos, nos envergonhamos de estar sentindo algo e procuramos enobrecer com outras justificativas.
A maior parte das brigas é por algo que não foi contado, por isso nunca são resolvidas. Se me bate ciúme da mulher porque ela voltou tarde de uma saída com as amigas, por exemplo, sou capaz de jamais tocar no assunto. Pelo contrário, apresento-me independente e bem resolvido e até inspiro que ela repita os encontros. Mas depois comprarei uma discussão boba pela bagunça do nosso quarto.
Assim não sou honesto com a irritação. Transferi o que me perturbava para um cenário diferente, sem nenhuma correspondência com o verdadeiro. A esposa me entende distorcido: vê que sou extremamente chato com a arrumação da casa, e não que sou ciumento.
Há uma deslealdade ingênua em curso, involuntária e automática, que trará sérias dificuldades de comunicação. A mulher enxerga a ansiedade do ciúme, porém as minhas palavras dizem o oposto. Como me encabulo da insegurança amorosa, não comento o que me enervou, e vou catando conflitos falsos para explodir e desabafar. Ela me interpreta errado pois transmiti a mensagem errada.
Ao esconder a origem da minha angústia, é certo que brigaremos mais vezes. O que explica o quanto casais estouram do nada em restaurantes, em passeios, em bares. Ninguém compreenderá o estopim da guerra. A motivação parece sempre absurda (falar de boca cheia, rir demais).
Só que o nada não é nada. O nada é um desconforto atrasado, um pequeno ressentimento que não foi desfeito no flagrante. A gota d’água costuma vir de uma torneira diferente daquela que encheu o copo.
Publicado no jornal Zero Hora
Revista Donna, p.32
Porto Alegre (RS), 09/08/2015 Edição 18252
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