Pretensas fórmulas, manuais, bulas, estatísticas, dentre outras tentativas de enquadrar e categorizar a vida, os comportamentos e as pessoas, de modo a elencar determinadas formas de fazer algo, ou interpretar uma ação, ou ainda rotular alguém, não é algo estritamente contemporâneo. Entretanto, talvez pela facilidade de veiculação de informações, ou pelas características predominantes inerentes à nossa época. Creio que nunca se viu tantas propostas para “esquematizar” as experiências quanto encontramos hoje. Testes de personalidade (não necessariamente sérios e muito menos científicos), padrões estéticos e comportamentais contribuem para patologizar as diferentes formas de existir a reveria, engordando os livros dos CIDs e DSMs. Livros da auto ajuda (que na verdade não tem nada de “auto”) são vendidos como Best Sellers, técnicas de comportamento são veiculadas em textos, vídeos e palestras, como se as mesmas coisas funcionassem da mesma forma para qualquer um. Crônicas trocam o humor sarcástico pela lição de moral. Enfim, lembro-me do vídeo clip da música “Another Brike in the Wall” do Pink Floyd, em que os alunos de uma escola aparecem uniformizados, com mascaras deformadas que escondem suas faces, caminhando de forma heterogênea e sem vida para caírem em um máquina de moer carne. Lembro-me dos treinamentos dos exércitos militares, em que todos devem marchar de forma igual, e fazer tudo igual, sem questionar, para engolirem a ideia indigesta de morrer por uma pátria se for necessário. Essas pátrias as quais se deve servir gentilmente, mas que não servem a ninguém.
Essa tendência a hegemonização global desvirtua até mesmo a diferença, transformando atitudes, estilos e estereótipos que em um tempo foram marginalizados e revolucionários em tendências da moda, figuras do marketing e por aí vai. Estes resíduos da cultura capitalista, em que a quantidade supera a qualidade, em que a essência é ignorada em detrimento da aparência, potencializam a chaga civilizatória que prega a massificação, afinal, isso facilita a dominação e o controle sobre o ser humano. Não critico as tradições, e muito menos afirmo que não possamos aceitar conselhos, expressar nossas experiências e a percepção que temos delas, compartilhar nossas opiniões e defendê-las, nos alegrarmos quando encontramos pessoas afins, ou mesmo gostar de uma proposta estética e querer adotá-la em nosso cotidiano. No entanto, o rumo dessa produção em massa de manual de instruções para todas as finalidades é muito mais complicado e perverso do que parece.
Se em outras épocas a imposição de padrões era explícita e rígida, como podemos recuperar na memória histórica do funcionamento das instituições de educação, das famílias e outras formas coletivas organizadas, atualmente essa imposição é global, sutil e mascarada de liberdade. Absorve-se às vezes essa substância pastosa do “como deve ser” sem que se perceba, e seus efeitos colaterais se reproduzem e infectam como vírus as ações e percepções que deveriam ser pessoais. Algumas situações em particular me levaram a refletir seriamente sobre isso. Como quando em uma conversa de boteco que, até então, para mim era descontraída, a interlocutora me pediu estatísticas que comprovassem o que eu estava falando. Sério? Então são estatísticas que resumem a natureza de um assunto? Se fosse tão simples, estaríamos vivendo em um paraíso, pois o que não falta por aí são estatísticas. E outra, pedir alguém para comprovar estatisticamente sua opinião holística, como era o caso, em um bar, é muita apelação. Na mesma linha, por vezes me encontro com perguntas sobre o que e em que grau alguém precisa ter para me atrair, ou vejo outras pessoas se orgulhando de serem questionadas sobre isso, provavelmente por se sentirem desejadas. Isso me deixa perplexa. Só falta começarem a abrir editais de processo seletivo para potenciais amores e amizades…
O absurdo dessa lógica que quantifica e padroniza é que ela propõe que nos moldemos para nos oferecer a algo ou a alguém. Tornamo-nos mercadorias e vendedores de nós mesmos. Isso acontece a todo o momento, e em algumas situações não há escapatória, como é o caso das entrevistas de emprego, por exemplo. No entanto, onde isto nos leva? Inequivocamente, para algum lugar tão longe de nossa própria existência, que perdidos de nós, convertemo-nos em um objeto sem vida e fácil de manipular. Lygia Fagundes descreve de forma muito clara esse perder-se do ser em seu conto “Eu era mudo e só” (no livro “Antes do Baile Verde”):
“Depois, com o passar do tempo, a metamorfose na maquinazinha social azeitada pelo hábito de rir sem vontade, de chorar sem vontade, de falar sem vontade, de fazer amor sem vontade… O homem adaptável, ideal. Quanto mais for se apoltronando, mais há de convir aos outros, tão cômodo, tão portátil. Comunicação total, mimetismo: entra numa sala azul fica azul, numa vermelha, vermelho. Um dia se olha no espelho, de que cor eu sou? Tarde demais para sair porta afora”.
Neste conto, a autora que narra a partir da voz de um homem político aposentado discorrendo sobre a sua própria vida, confunde a percepção do leitor, que não sabe se este homem está metaforizando sua vida com um cartão postal, ou se está louco achando que vive dentro de um cartão postal.
O grande triunfo dessa lógica cultural e social é fazer com que as pessoas pensem que, se elas não conseguirem se adaptar a algo e não forem bem sucedidas, elas são fracassadas e exclusivamente culpadas por suas dores. Quem foge a regra do camaleão, recorrentemente joga cartas com a solidão. Ou dá conta e se diverte com isso, ou se rende e perde suas cores e metamorfoses espontâneas. É claro que temos nosso papel em cada coisa acontece, mas que papel é esse, que é nosso, se não existir alguém para ser? Por vezes, as pessoas se tornam apenas o papel, vivem o papel, e quando esse papel perde o sentido, elas perdem o sentido de viver. Isso explica pessoas que odeiam seus trabalhos, mas se recusam a aposentar, ou casais que não se suportam, mas não se separam. Ou ainda, pessoas que adorariam viver uma experiência diferente (estas, ainda com uma centelha de vida, pois não perderam a capacidade de sonhar e desejar), mas se encontram tão aprisionadas à rotina que não arriscam sequer sair pelo portão.
É que existir é imanente à surpresa, ao imprevisível, ao novo, ao mutável, e diante disso é inútil buscar por uma fórmula mágica que ofereça uma solução precedente ao confronto com problema. Assumir a vida às vezes é mergulhar no problema, como um físico que busca provar sua teoria absurda. Provar a vida que é oferecida. Arriscar desagradar, errar, falir, sofrer, ser desprezado, excluído, mal visto, machucar-se, morrer. E é a consciência de que estamos vivendo simplesmente para em algum momento tudo acabar (mesmo que exista outra vida, ela não seria a mesma de agora), que às vezes faz com que as pessoas repensem sua travessia pela existência, e percebam que “provar a vida” oferece também o risco de se alegrar, de amar, de receber, de sentir-se especial, descobrir prazeres, conhecer, se encantar, viver a paz e o êxtase intensamente.
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