Ana Macarini

Maria queria apenas poder ficar em casa, em sua concha

Maria é uma mulher comum, como eu, como você. A não ser pelo fato de que começou a perceber – e ela não se lembra exatamente de quando isso teve início -, que a sua luz interior começou um dia a piscar, enfraquecer e dar sinais de que um dia ia se apagar de vez.

Maria era tomada por uma vaga sensação de fraqueza, um torpor, uma vontade de ficar quieta. No começo achou que poderia estar prestes a pegar uma gripe, uma virose, qualquer uma dessas doenças físicas e aparentemente inofensivas, mas que o mundo legitima e aceita, a ponto de entender que, por alguns dias, a vítima tem o direito de não trabalhar, não cuidar da casa, não se arrumar, não interagir com o mundo.

Então, num desses dias em que Maria acordou, abriu os olhos, mas percebeu que seu corpo sonhava em permanecer no quentinho da cama, ela pegou seu celular e ligou para a pessoa responsável pelo seu departamento no trabalho. Disse que havia acordado muito indisposta, talvez tivesse febre, a cabeça doía…

Pelo menos por um dia, ela havia conseguido dar um jeito de permanecer na sua concha. A casa vazia, porque todos os outros tinham saído para trabalhar ou estudar, era um oásis de paz e silêncio. Maria se aconchegou nas cobertas, embora não fizesse frio lá fora… dentro dela era um mar de gelo que dominava tudo.

Acordou novamente algumas horas mais tarde. Já passava do meio-dia. Ela aproveitou a quietude mantida na casa e ficou ali, deitada em silêncio, apenas tentando entender a falta de energia, a tristeza, a melancolia. Pensando bem, sua cabeça de fato doía um pouco, o corpo parecia prostrado. Afinal de contas, podia mesmo ser uma gripe ou virose. Achou que seria necessário avisar a família. Então, mandou uma mensagem no grupo, repetindo as mesmas palavras que a autorizaram a faltar no trabalho.

Algum tempo depois, conseguiu desgrudar seu corpo da cama. Arrastou-se até o banheiro; tomou um banho quente – continuava sentindo frio, apesar de fazer 30 graus lá fora -, lavou os cabelos e, depois de se enxugar e vestir outro pijama limpo, estava se sentindo quase humana.

Maria foi até a cozinha e, mesmo não sentindo fome alguma, tirou uma bandejinha de frango do freezer para preparar o jantar da família. Tentou focar a pouca força que tinha na tarefa de cozinhar. Uma hora depois, um frango bem temperadinho assava no forno, um arroz fresquinho estava em processo no fogão e uma salada caprichada descansava pronta na geladeira.

Ela voltou para cama. Mesmo focada na tarefa da “operação jantar”, Maria sonhava com o momento de poder voltar para a cama. Tentou ler um pouco, ver aquela série incrível que ela amava, assistir a um daqueles programas bem bobos que passam à tarde na TV. Mas, sua mente parecia errante, desconexa, lenta. Então, ela voltou a mergulhar num sono profundo e cheio de sonhos. Acordou, sobressaltada e culpada, quando ouviu o barulho de alguém que já voltara para casa depois de um dia longo de trabalho.

A família foi chegando aos poucos. Todos, sem exceção, concordavam que ela devia mesmo estar doente, afinal estava abatida, com os “olhos fundos” e uma aparência cansada.

Naquela noite, Maria foi dormir – depois de tomar o remédio para conseguir pegar no sono, prescrito por um médico do plano de saúde. Antes de fechar os olhos, pensou com convicção que no dia seguinte tudo seria diferente. Ela certamente acordaria disposta e descansada, afinal havia passado um dia inteirinho prostrada em sua cama.

Só que não foi isso que aconteceu. Maria voltou a despertar com o barulho do alarme e, como vinha se repetindo cada vez com mais frequência, sentiu um aperto no peito ao pensar em enfrentar um dia de trabalho, o trajeto até a empresa, a vida fora de sua concha de proteção. Mais uma vez, ligou para sua chefe e disse que lamentava, mas continuava doente.

Decidiu procurar um médico. Outro médico. Afinal já tinha uns bons oito meses que peregrinava por diversos consultórios e especialidades em busca de uma resposta… que nunca vinha. Maria fez todo tipo de exame e todos diziam a mesma coisa: “Você tem uma saúde perfeita”!

Então, junto com a sensação da doença invisível, Maria passou a ser invadida por um sufocante sentimento de culpa. Teria ela se transformado numa dessas pessoas fracas, irresponsáveis e preguiçosas que ela sempre desprezou? Logo ela, que trabalhava desde os quatorze anos; que amava seu trabalho, e que era a responsável por 80% do orçamento doméstico?

O tempo foi cumprindo seu curso e as crises só aumentavam. Desesperada, Maria começou a acreditar que com certeza tinha uma doença grave e que acabaria morrendo por causa da incompetência dos médicos que a atendiam.

À medida que as crises foram se tornando cada vez mais frequentes, Maria já nem se importava mais em criar sintomas. Apenas avisava no emprego que não poderia ir naquele dia, e no outro, e no outro.

Até que o pior, e lamentavelmente previsível aconteceu: Maria foi demitida. Sua energia cada vez mais exígua agora tinham como companhia o desalento da falta de renda para honrar os compromissos e a dura realidade de não ter mais um plano de saúde para onde correr e continuar buscando uma resposta.

Foi em meio a esse caos que um anjo em forma de amigo insistiu para que Maria fosse se consultar com uma conhecida Psiquiatra que faria a gentileza de atendê-la numa consulta em um hospital público.

Durante um mês inteiro, Maria via a Psiquiatra dia sim, dia também. Por meio de um minucioso exame clínico, que levou duas semanas para ser concluído, mais a análise dos incontáveis exames que Maria colecionava, a jovem e competente médica chegou ao diagnóstico: Maria sofria de Transtorno Bipolar numa forma “não clássica”; o que explicava a depressão mista, a ansiedade, a prostração, o desalento.

Maria passou a ser tratada. Não foi nada fácil acertar o tipo e a dosagem do estabilizador de humor, associar o antidepressivo e administrar a insônia persistente, aliada a uma constante sonolência durante o dia, misturada a uma mente inquieta que se recusava a parar de pensar. Mas foi libertador descobrir que o que Maria sentia tinha nome e sobrenome; não era preguiça; não era falta de fé; não era frescura; não era melindre.

Maria viveu na pele o desespero de ter uma doença mental que, infelizmente ainda é muito estigmatizada pela sociedade. Ninguém culpa outra pessoa por ter uma doença física grave, mas se sente autorizado a julgar um estado depressivo como se fosse uma escolha. Maria saiu mais forte dessa luta. Ressignificou sua vida. Voltou a trabalhar. Voltou a estudar. Voltou a viver. Maria sobreviveu. No entanto, existem milhares, senão milhões de Marias que não tiveram a mesma sorte. Que não conseguiram sair vivas dessa experiência.

Que não estão aqui para contar suas histórias!

Ana Macarini

"Ana Macarini é Psicopedagoga e Mestre em Disfunções de Leitura e Escrita. Acredita que todas as palavras têm vida e, exatamente por isso, possuem a capacidade mágica de serem ressignificadas a partir dos olhos de quem as lê!"

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