Matryoshka, ou boneca russa, é um brinquedo tradicional da Rússia, constituído por uma série de bonecas que são colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). Parece que o significado do brinquedo provém de uma lenda e pode significar fertilidade, cuidado e proteção.

Outro dia, porém, pensando no quanto a vida da gente é costurada e ajustada, cheia de bainhas, recortes e emendas, cheguei à conclusão que bom mesmo é ser a última bonequinha da Matryoshka, aquela menorzinha que encontramos ao final e que, significativamente, não é oca.
Porque evoluímos demais. Adquirimos hábitos civilizatórios, aprendemos a cumprir nossos deveres e adquirimos bons modos pra viver em sociedade. Mas também nos afastamos da matéria de que somos feitos, mais ou menos como se colocássemos bonecas em cima de bonecas e ao final acreditássemos ser a boneca maior, quando na verdade somos a menor.

Talvez a maior evolução que nosso cérebro tenha alcançado evolutivamente tenha sido essa capacidade de se adaptar e nos permitir sermos seres sociáveis. Aprendemos, desde muito cedo, quais hábitos são aceitáveis ou não. Mas ninguém nos explicou de que forma iríamos assimilar tanto “isso pode e isso não pode”. E daí que colocamos pra baixo do tapete coisas demais, que poderiam facilmente conviver bem à tona de nós mesmos sem causar prejuízo a ninguém… Varremos porque entendemos que aquilo poderia não ser tão agradável. E assim nos transformamos em Matryoshkas enormes, mas que no interior carregam um desenho original bem distante do que é visível aos olhos.

Vivendo em sociedade, aprendemos que é de bom tom ser sorridente, simpático, resignado, tranquilo, sensato, equilibrado e até obediente. Só que nem todo dia é assim, primaveril… Existem dias áridos, em que você acorda e não está a fim de seguir a cartilha, nem forçar um sorriso, e sinceramente, querendo que tudo se #¨*oda. Então você descobre que há maneiras mais saudáveis de conviver. E entende que essa história de “bonzinho” não passa de identificação _ identificação de um ego inseguro com o modelo de perfeição. Então você vai diminuindo de tamanho. Remove uma a uma as Matryoskas ocas que lhe deram essa identidade e descobre-se pequeno, mas inteiro.

Somos muitos. Assumimos papéis e interpretamos diferentes versões. Só que a identificação é muito perigosa. O perigo é acreditar que sou uma das bonecas ocas. E viver em função dessa identidade oca também _ o ego.

Não se trata de retirar máscaras. Nem acreditar que autenticidade é dizer na cara das pessoas as mais duras verdades. É, antes de tudo, viver com mais coerência e menos culpa. Descobrir, lá no fundo, o que lhe permite ser livre _ verdadeiramente, sem se levar a sério demais.

Faz parte do desejo de ser aceito renegar um pouco a si mesmo. Mas depois que a gente cresce e percebe que precisa ser mais leve, descobre que deu importância demais a regras sem sentido só em função do medo de não ser amado. E percebe que bom mesmo é ser verdadeiro, pois quando me aproximo de mim, sou mais feliz e consequentemente, fácil de conviver.

Quando renegamos a nós mesmos, é como se colocássemos bonequinhas em cima de bonequinhas, como a Matryoska, e disfarçássemos nossa essência com excesso de controle e julgamento. Quando nos aceitamos, estamos prontos para a mudança, e por mais paradoxal que isso pareça, a mudança não nos torna diferentes de quem somos e sim parecidos com quem realmente somos. E aqui não me refiro a jogar tudo pro alto, ser egoísta, negligente, promíscuo ou mau educado. Falo da busca daquilo que não faz parte do ego, nem da necessidade de agradar, mas que representa o que realmente sinto e penso. Quando conseguir chegar ao interior das bonequinhas ocas, a mudança estará completa, pois decido viver de acordo com minha verdade, e não assumindo papéis que distorcidamente acumulei durante os anos de minha vida em função de agradar, de ser perfeito, de ser aceito, de ser amado. Enfim descubro que posso ser amado pelo que sou, e não pelo que represento ser.

Na vida, a gente se ajusta como pode. E isso implica negar impulsos, necessidades, vontades. E como varremos tantos anseios, ou precisamos de tantos limites, nos incomodamos com quem se assume. Se assume imperfeito, incompleto, despreparado, descuidado, atrasado, inadequado… Isso incomoda, porque se somos tão controlados, como alguém pode não ser? Se sofro tanto pra trancar meus pecadinhos lá no fundo, como alguém pode escancará-los numa boa?

Por isso a liberdade é tão difícil de ser encontrada. Difícil porque está no fundo, camuflada por essa necessidade que temos de nos ajustar. Então desejamos, mas será que desejamos o que realmente queremos? Ou estamos tão identificados com a superfície que não sabemos mais o que no fundo queremos realmente? Sendo a liberdade a menor bonequinha da Matryoshka, a capacidade de percebê-la é um exercício difícil, que requer retirar as carapaças e identidades, descobrindo a própria verdade.
Você já parou pra pensar que aquilo que aparentemente está mais bem resolvido pra você pode ser o que lhe afeta mais? Ou que toda essa culpa que você frequentemente experimenta vem da dificuldade de ser coerente, de estar alinhado entre o adequado e o desejado? #Fica a dica, como dizem por aí… quem sabe um dia você possa perceber que a maior e mais vistosa boneca Matryoshka não lhe representa. Ao contrário, será removendo uma a uma das bonecas ocas que você encontrará a si mesmo, menor e mais compacto, mas acima de tudo, inteiro.

Imagem de capa: Amedeo Zullo/shutterstock

Fabíola Simões

Escritora mineira de hábitos simples, é colecionadora de diários, álbuns de fotografia e cartas escritas à mão. Tem memória seletiva, adora dedicatórias em livros, curte marchinhas de carnaval antigas e lamenta não ter tido chance de ir a um show de Renato Russo. Casada há dezessete anos e mãe de um menino que está crescendo rápido demais, Fabíola gosta de café sem açúcar, doce de leite com queijo e livros com frases que merecem ser sublinhadas. “Anos incríveis” está entre suas séries preferidas, e acredita que mais vale uma toalha de mesa repleta de manchas após uma noite feliz do que guardanapos imaculadamente alvejados guardados no fundo de uma gaveta.

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