(Trecho de uma palestra proferida por Mia Couto, intitulada ” Da cegueira colectiva à aprendizagem da insensibilidade”, em Maputo/2012)
Durante anos, fui professor. E quando digo isto há uma emoção fortíssima que me atravessa. Eu não sei se há profissão mais nobre do que a de ensinar. E digo ensinar porque existe uma diferença sensível entre ensinar e dar aulas. O professor no sentido de mestre é aquele que dá lições.
Os professores que mais me marcaram na vida foram os que me ensinaram coisas que estavam bem para além da matéria escolar. Não esqueço nunca um professor da escola primária que um dia leu, comovido, um texto escrito por ele mesmo. Logo na declaração da sua intenção nasceu o primeiro espanto: nós, os alunos, é que fazíamos redações, nós é que as líamos em voz alta para ele nos corrigir. Como é que aquele homem grande se sujeitava àquela inversão de papéis? Como é que aceitava fazer algo que só faz quem ainda está a aprender?
Lembro-me como se fosse hoje: o professor era um homem muito alto e seco e, nesse dia, ele subiu ao estrado da sala segurando, nos dedos trémulos, um caderno escolar. E era como se ele se transfigurasse num menino frágil, em flagrante prestação de provas. Parecia um mastro, solitário e desprotegido. Só a sua alma o podia salvar.
Depois, quando anunciou o título da redação veio a surpresa do tema que parecia quase infantil: o professor iria falar das mãos da sua mãe. Éramos crianças e estranhámos que um adulto (e ainda por cima com o estatuto dele) partilhasse connosco esse tipo de sentimento. Mas o que a seguir escutei foi bem mais do que um espanto: ele falava da sua progenitora como eu podia falar da minha própria mãe. Também eu conhecera essas mesmas mãos marcadas pelo trabalho, enrugadas pela dureza da vida, sem nunca conhecerem o bálsamo de nenhum cosmético. No final, o texto acabava sem nenhum artifício, sem nenhuma construção literária. Simplesmente, terminava assim, e eu cito de cor: “é isto que te quero dizer, mãe, dizer-te que me orgulho tanto das tuas mãos calejadas, dizer-te isso agora que não posso senão lembrar o carinho do teu eterno gesto.”
Havia qualquer coisa de profundamente verdadeiro, qualquer coisa diversa naquele texto que o demarcava dos outros textos do manual escolar. É que não surgia ali, em destacado, uma conclusão moral afixada como uma grande proclamação, uma espécie de bandeira hasteada. Aquele momento não foi uma aula. Foi uma lição que sucedeu do mesmo modo como vivemos as coisas mais profundas: aprendemos, sem saber que estamos aprendendo. Lembro este episódio como uma homenagem a todos os professores, a esses abnegados trabalhadores que todos os dias entregam tanto ao futuro deste país.
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