Marília Lopes, mulher negra e professora universitária de 38 anos, procurou uma psicóloga porque sofria com depressão há muitos anos. Sentia que precisava de ajuda e que seu trabalho estava sendo severamente prejudicado. Na primeira sessão de psicoterapia, sentiu a necessidade de falar sobre as diversas situações em que sofreu racismo, contando de sua infância trabalhando como empregada doméstica e babá sob o pretexto de que estava “brincando com a filha da patroa”, até casos mais recentes, em que fora seguida dentro de lojas onde fazia compras. Ao final, a psicóloga – que era branca – afirmou que Lopes precisaria mudar o comportamento de “se vitimizar e transformar acontecimentos normais em racismo”.
Em busca de sua segunda psicóloga, Lopes chegou a fazer cinco sessões de psicoterapia, quando finalmente começou a falar do racismo que lhe causava sofrimento. “A psicóloga ficou visivelmente impaciente e desconfortável e me perguntou se eu achava mesmo que racismo ainda existia nos tempos de hoje”, relata Lopes. “Saí de lá arrasada, estava pagando muito caro por cada consulta e nunca imaginei que uma profissional fosse questionar a veracidade do meu sofrimento, do racismo, daquela forma. Nunca mais voltei a procurar terapia, hoje ainda luto contra a depressão e apenas faço uso de medicamentos”, completa.
O caso da professora Marília Lopes não está isolado da experiência de outras pessoas negras brasileiras. Para a bióloga Tereza Amorim, as consequências do despreparo profissional foram graves: “Comecei a fazer terapia com um psicólogo e tudo corria bem até que comecei a perceber que muitas das coisas que eu passava na vida aconteciam porque as pessoas eram racistas e me tratavam de forma discriminatória pelo fato de eu ser negra. Quando passei a falar sobre isso com meu terapeuta, ele primeiro começou a negar que aquelas coisas fossem racismo. Meu psicólogo disse que racismo não existe e depois passou a dizer que não existe mais racismo no Brasil, porque as ‘mulatas’ são valorizadas”.
Amorim conta que ainda enfrentou vários encontros com o psicólogo, até que descobriu um grupo de mulheres negras e feministas que se reuniam mensalmente em sua cidade. “Aos poucos, fui falando das minhas feridas provocadas pelo racismo e pelo machismo e entendi que elas eram parte de um problema social muito maior. A militância foi a minha terapia, a Psicologia não fez nada por mim”, declara.
O despreparo da Psicologia brasileira para lidar com questões raciais ainda é um fato preocupante. Em diversos grupos de discussões sobre racismo nas redes sociais, são recorrentes os pedidos por indicações de psicólogos capacitados para lidar com o problema do racismo. Entre tímidas recomendações, uma chuva de depoimentos frustrados aparece.
Para Cinthia Vilas Boas, psicóloga e militante do movimento negro, o problema começa nos cursos de formação. “A realidade está muito longe do que chamamos de transversalidade”, afirma. Embora o racismo seja um profundo problema no Brasil, a formação dos psicólogos ainda não reconhece a discriminação racial como uma fonte de adoecimento psíquico – se reconhecesse realmente, o tema não seria uma exceção conquistada pelos esforços de profissionais como Vilas Boas, que é colaboradora da atual gestão das subsede do Conselho Regional de Psicologia em Campinas, onde integra o grupo de trabalho sobre relações raciais.
Embora haja esforços para se debater racismo na Psicologia – principalmente por meio de atividades propostas por Conselhos Regionais como o da Bahia, o do Distrito Federal e o de São Paulo –, essas ações ainda são uma minoria no imenso contexto da Psicologia brasileira. Nenhum Conselho tem o poder de modificar as grades curriculares das faculdades e Universidades e inserir disciplinas ou bibliografias que abordem o racismo de maneira profunda, como é necessário que se faça. Por isso, na realidade diária, muitas pessoas negras continuam encarando a omissão e o despreparo dos psicólogos em seus consultórios privados – e muitas também não sabem que podem denunciar as práticas racistas e antiéticas.
Racismo e saúde mental
Encontrar dados que mostrem a relação entre racismo e adoecimento psíquico ainda é um desafio devido à carência de estudos e pesquisas acessíveis na área. O material que se encontra na internet é produzido por psicólogos militantes do movimento negro, como a publicação “Racismo e os efeitos na saúde mental” de Maria Lúcia da Silva, integrante do instituto AMMA Psiqué e Negritude.
Cinthia Vilas Boas explica que há muitas consequências do racismo para a saúde mental e traça um breve resgate histórico da população negra brasileira: “Em África, éramos diversas etnias, com nossos referenciais, línguas, oralidade e educação; viemos para o Brasil escravizados, em condições sub-humanas, como animais; hoje estamos nas favelas, com falta de acesso a tudo, sofrendo com a falta de respeito e baixa autoestima”. Vilas Boas chama atenção para essa contextualização, explicando que a população negra brasileira não conhece sua ancestralidade e nem sua “história positiva”. “Se pensarmos que nossa construção enquanto humanos parte da visão que o outro tem e a história positiva não é contada, estamos em constante angústia. A nossa história nos foi negada, não foi contada e foi distorcida”, salienta.
Por isso, o sofrimento psicológico pode começar na falta de acesso a informação e da dificuldade de enxergar as pessoas negras como parte de algo bom, que trouxe contribuições para a história. Na escola, as crianças aprendem sobre a história europeia e sobre as descobertas realizadas por pessoas brancas, mas a história do continente africano e suas diversas riquezas e saberes é omitida. “O povo negro não se sente pertencente das suas realizações, das suas posições, das suas possibilidades, das suas contribuições. Isso causa um desequilíbrio, sendo assim um impacto na psiqué”, diz Vilas Boas.
O resultado desse ponto inicial é um ferida na autoestima, que leva pessoas negras a se enxergarem de maneira inferiorizada, pois são tratadas pelos outros como inferiores. Debaixo de humilhações constantes, sem representatividade positiva na mídia e até mesmo no entretenimento, vivendo sob os piores índices e indicativos sociais e, ainda, ouvindo o tempo inteiro que o racismo deixou de existir, o sofrimento psíquico é um destino certo.
Até mesmo a possibilidade de identificar a raiz do seu sofrimento é roubada das pessoas negras, mesmo quando conseguem romper muitas barreiras sociais e pagar um atendimento psicológico – algo que ainda é muito caro no Brasil. “Eu fiquei me questionando se não estava errado que duas psicólogas me dissessem que não existia racismo e que as dores que eu sentia eram criações da minha mente. Achei, por muito tempo, que eu estava totalmente louca e duvidei da veracidade dos fatos que eu vivi. Fiquei achando que nada havia realmente acontecido e eu estava com um problema mais grave do que depressão”, conta Marília Lopes. “Depois de muitos meses foi que consegui entender que fui mal atendida, mas só quero voltar a fazer terapia se a psicóloga ou psicólogo forem negros, quem sabe assim esse profissional tenha mais empatia e até tenha vivenciado fatos similares aos que me agrediram”, finaliza.
“As políticas publicas estão aí; já pensamos, já falamos em conferências e agora precisamos tira-las do papel”, afirma Vilas Boas. “A Política Nacional de saúde da população negra, que pode diminuir disparidades raciais na saúde, é pouco conhecida, bem como a Lei 10.639, entre outras varias leis, campanhas e diretrizes. A fim de avançar no tema, o Conselho Federal de Psicologia criou a Resolução Nº 018 em 2002, que estabelece normas de atuação para psicólogas e psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial”, explica. Porém, na prática, a realidade é outra. “Existe a discriminação institucional, quando profissionais da área não estão preparados para atender a população negra ou até são preconceituosos, levando a diferenças e desvantagens no tratamento devido à raça. Para o profissional da saúde, é importante trabalhar a equidade do SUS, é importante que ele saiba trabalhar as diferenças”.
A educação pode ser um ponto chave para modificar esse quadro – Vilas Boas explica que é necessário construir um espaço legitimo e confortável para que as pessoas negras construam sua identidade. “Sem piadinhas, sem que o estereótipo fale mais alto, sem que sejamos vistos como sujos, burros ou coitadinhos. A humilhação atinge o sujeito no que constitui, atinge o negro na sua presença”, protesta. “Não queremos mais os atributos inferiores, fixados no nosso inconsciente. Queremos ser negras e negros protagonistas da própria história, da história da sociedade. Uma sociedade mais democrática e sem desigualdades. Que a gente possa fazer a diáspora de sentimentos, sabendo que sentimento é, de onde veio, como veio e aonde vai. Que a gente possa encontrar o equilíbrio para preservar a saúde mental”, almeja Vilas Boas.
Enquanto buscamos esse país livre de racismo, precisamos reconhecer o problema do racismo em todos os âmbitos sociais, sem que nenhuma prática profissional ou formação acadêmica fique isenta de sua responsabilidade. Não dá para ignorar um problema tão grave e fazer vista grossa para o despreparo profissional de psicólogos que não conseguem lidar com as questões raciais. O ensino de Psicologia precisa mudar.
“O negro com muita melanina é invisível, tem a voz calada. O negro com pouca melanina é desconsiderado e muitas vezes não sabe a que grupo étnicorracial pertence. Onde guardamos e como e vivemos a nossa subjetividade? Quem são as pessoas que estão produzindo na academia? São brancas ou negras? Estão produzindo o que?”, provoca Cinthia Vilas Boas.
A resposta pode não ser confortável, mas encará-la é o primeiro passo para que a saúde mental deixe de ser um privilégio de poucos. O racismo precisa ser reconhecido e combatido para que exista, de fato, saúde mental.
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Texto de Jarid Arraes republicado no Geledés
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