Santo Agostinho, nas suas Confissões, conta dos seus pecados da juventude, entre eles o seu deleite no furto. Furtava peras azedas do pomar de um vizinho quando, no seu próprio pomar, havia peras doces. É que ele não estava à procura das peras. O seu deleite estava no próprio ato de furtar. Agostinho confessava seu pecado, arrependido. Mas confissões nem sempre implicam arrependimento. É o caso de Picasso, que afirmou, com um sorriso malicioso: “Se existe algo que possa ser roubado, eu roubo”. De fato roubar é algo delicioso. Eu, mais tímido, só me lembro de um modesto roubo de pitangas, já confessado publicamente sem arrependimento. Pecado grave vou confessar agora, também sem arrependimento, muito embora me sinta coberto de vergonha: quando adolescente, a minha leitura favorita, afora o Globo Juvenil, o Gibi e o X-9, de que não me envergonho, era a Seleções do Reader´s Digest. Engolia tudo sem ter a menor ideia de que aquilo era propaganda da american way of life que, diga-se de passagem, tem coisas deliciosas e boas. Pois dentre os artigos havia uma série com o título “O meu tipo inesquecível”. Era sempre um relato sobre alguma pessoa diferente- por isso que se chamava “tipo”-, tão diferente e sedutora que era “inesquecível”.
Pois hoje quero falar sobre um dos meus tipos inesquecíveis. É um pedreiro. Ah! Que injustiça: definir uma pessoa dizendo qual é a sua profissão. Esse é o jeito corriqueiro, bem sei. Sou pedreiro, sou físico, sou padre, sou motorista, sou psicanalista- assim vamos perpetuando essa perversa equação entre o “ser” e o “fazer”, sem nos dar conta de que o “fazer” é apenas um pedacinho de praia nesse mar imenso que é a alma humana. Não. O seu João Januário sabe ser pedreiro, pedreiro muito bom, dos melhores que já conheci. Mas pedreiros bons há muitos. Bons pedreiros são todos iguais. O que me interessa no seu João não é especificamente a sua ciência de construtor. É a sua sabedoria. Eu podia ficar jogando papo fora com eles por horas a fio, sem nunca me cansar. Eu estava sempre aprendendo. Quando não estava aprendendo, estava me divertindo. Quando não estava me divertindo, estava me comovendo, como, por exemplo, ao ver a primeira coisa que ele fazia ao chegar à minha casa. pegava a peneirada piscina e salvava todas as abelhas que estavam se afogando. Foi numa dessas ocasiões que lhe contei a estória de um homem pecador dos piores que foi salvo do inferno por uma única aranha que ele havia salvo: ela se compadeceu dele e jogou, no abismo escuro, um fino fio pelo qual ele subiu. Aí ele redobrou seu cuidado com as abelhas, muito embora, eu tenha certeza de que, se ele não for para o céu, é possível que as privadas de lá se entupam sem que ninguém de lá saiba como desintupi-las. Será que eu disse heresia? No céu tem privada? Deve haver. Claro que tem. Onde há comida tem de haver privada, e está dito que no céu vai hazer um grande banquete. Só que, no céu, tudo é perfumado e bonito. Posso até imaginar que as nuvens branquinhas sejam o que sai dos anjinhos novinhos, as nuvens cor-de-rosa, o que sai dos anjos apaixonados, as nuvens negras, o que sai dos anjos trevosos. Eu e o seu João conversávamos sobre essas profundas questões metafísicas, com a seriedade própria de dois meninos, o que me faz lembrar a definição definitiva de Nietzsche sobre a maturidade como aquela condição em que recuperamos a seriedade que as crianças têm ao brincar.
Voltando às privadas. Aconteceu que uma privada da minha casa ficou entupida, e inúteis foram todos os artifícios comuns aplicados em tais eventualidades. Eu já tinha perdido a esperança e me preparava para mandar arrancar a privada quando o seu João disse, tranquilamente, “Desentope com extintor de incêncio…”. Assustei-me. Achei que fosse brincadeira. Mas ele confirmou sério e acrescentou: “Daqueles que têm uma mangueira de borracha”. Aluguei um extintor, ele enfiou o tubo dentro da privada, calçou muito bem com sacos, segurou firme e disse: “Dê só uma beliscadinha no gatilho”. Foi Vapt-vupt. A privada desentupiu.
Mas a sabedoria dele era ampla, coisa inimaginável. Estávamos, os dois, chupando umas jabuticabas que estavam ficando difíceis de apanhar, lá na ponta dos galhos finos, as mais doces. Lamentei deixá-las para os morcegos. Ele observou: “Aquelas jabuticabas na ponta dos galhos, a gente apanha com um cano de PVC”. Dito isso, pôs-se a andar no quintak, à procura do tal cano que ele logo trouxe. Levou o cano até a gorda e distante jaboticaba, encaixou-a no oco do cano, deu uma chuchada, e esperou que ela escorregasse cano abaixo, até cair na sua mão que, em concha, a esperava na saída do cano.
Mas a maior virtude do seu João era a literatura. Não literatura escrita: literatura oral, fantástica, grande contador de casos impossíveis. Relatou, por exemplo, que, quando era criança, morava numa cidadezinha no alto de uma colina, lugar onde não passavam nem rio nem ribeirão, houve uma chuvarada horrenda, temporal nunca visto. Acabado aquele anúncio de fim de mundo, a meninada foi brincar na enxurrada, coisa deliciosa, os adultos bem que morrem de vontade, não brincam por pura vergonha, coitados, pois o seu João contou e jurou ser verdade que na enxurrada vinham peixes endurecidos, cobertos de gelo, que foram catados, escamados, fritos e comidos. Pensei numa repetição do milagre do maná que Jeová fazia chover no deserto sobre o povo faminto, mas milagres como aquele parece que não acontecem mais; descri, ri, caçoei do seu João, lorota de pescador. Aí, falando sobre o tal causo com um ilustre professor de física da Unicamp, cujo nome não vou revelar para que ele não caia em descrédito, ele me disse que ele mesmo já havia presenciado portento parecido, só que não eram peixinhos, mas sapinhos congelados. E logo me ofereceu uma teoria meteorológica para explicar o milagre- quem sabe o professor Sabatini, que fala sempre sobre as maravilhas da ciência, poderia lançar um pouco de luz sobre o caso. O que seria irrelevante para o causo do seu João, pois literatura não se faz com acontecidos ou por acontecer, mas com o maravilhoso, o fantástico, tal como escreveu o Saramago, fazendo voar a passarola de Bartolomeu de Gusmão, o padre voador, às custa das vontades dos homens morrentes que a vidente Blimunda engarrafava no momento mesmo em que deixavam o corpo dos moribundos em campos de batalha e de peste. Se o Saramago pode, o seu João pode também.
Depois foi o caso das seriguelas, frutinhas amarelas lindas que recebi de presente pelo correio de Maria Antonia, ex-aluna poetisa. Foi o início de um outro causo. seu João disse que os pés de seriguela crescem nas margens dos rios, sendo grandemente apreciados pelos pintados, peixes enormes. Aí ele relatou um acontecido maravilhoso. Estavam ele e uns companheiros numa praia de rio, pescando descuidados, deitados à sombra de uma seriguela e se deleitando com seus doces frutos amarelos. Não sabiam que aquela árvore e seus frutos eram propriedade particular de um enorme pintado que, vendo assim invadidos os seus domínios por tão desavergonhados gatunos, irou-se do outro lado do rio onde havia ido visitar a namorada, e veio num nado furioso na direção dos ladrões. “Aí, seu Rubem, quando ele chegou perto, saltou para fora do rio e deu uma rabanada tão forte na água que ficamos todos ensopados.” Eu nada disse, sabedor que os causos do seu João são sempre verdadeiros. Apenas lhe ofereci uma seriguela, não sem antes me certificar de que não havia nenhum pintado nas proximidades.
Conheça o Instituto Rubem Alves e participe de seus projetos.