Mia Couto nasceu em 1955, na Beira, Moçambique. É biólogo, jornalista e autor de mais de trinta livros, entre prosa e poesia. Seu romance Terra sonâmbula é considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Recebeu uma série de prêmios literários e, em 2013, foi vencedor do Prêmio Camões, o mais prestigioso da língua portuguesa. É membro correspondente da Academia Brasileira de Letras.

Foto Diogo Guine
Sou de um tempo e lugar em que os comboios eram lentos, tão vagarosos que pareciam arrependidos da viagem. Na estação, não havia despedida. Nada de separação traumática, o golpe definitivo da partida. Tudo era tão lento e esfumado que se convertia em irrealidade. A despedida como repentina ruptura eu aprendi mais tarde, no meu primeiro aeroporto. Voar é o sonho da própria poesia. Mas o voo tem despesas de afecto muito pouco poéticas.

Nasci e vivi entre meandros de rios, preguiçosas águas que se apegavam às margens. A estação ferroviária obedecia a essa líquida paisagem. O comboio era um barco e eu entendia porque se chamava “cais” àquela plataforma onde as mães agitavam os lenços brancos. Para mim, os modos lentos do comboio não resultavam de incapacidade motora. Eram, sim, gentileza. Uma afabilidade para com essas pequenas mortes, que são as despedidas.

Muitas vezes me desloquei para a estação dos caminhos-de-ferro com o fim de não me deslocar para lado nenhum. Ficava no banco de madeira a olhar a gente transitando. E me abandonava naquele assento durante horas, sem que o tempo me pesasse. Talvez eu viajasse mais que os próprios passageiros que chegavam e partiam. A minha cidade era pequena, tão pequena que os domingos, com seu tédio antecipado, não eram notados. Eu inventava os meus tempos fora do Tempo, ali na arrastada azáfama da estação ferroviária.

Não tive propriamente uma educação religiosa. Apenas de quando em quando eu entrava em recinto de igreja. Fazia-o porque havia ali um sossego que me refrescava a alma. Qualquer coisa parecida com o que eu encontrava na gare ferroviária. Com a diferença de que a estação me facultava um recolhimento do lado de dentro da Vida, um resguardo entre as pessoas e as almas que eu nelas inventava. Os fantasmas da igreja moravam na sombra fria. Os da estação eram solarentos, riam alto e falavam línguas que eu desconhecia.

Algo me ficou desse estacionamento de alma, como se eu ganhasse residência perene nas velhas estações de todo o mundo. Afinal, essa contemplação me trouxe como que um irreparável vício: ter um banco de madeira onde eu possa ver desfilar pessoas em flagrante viagem.

Mia Couto
Crônica sobre a cidade da Beira, sua cidade natal.
Jornal Expresso. Suplemento Única, pp. 40-44. Lisboa, 09 de fevereiro de 2007.

Fonte: Ricardo Riso

CONTI outra

As publicações do CONTI outra são desenvolvidas e selecionadas tendo em vista o conteúdo, a delicadeza e a simplicidade na transmissão das informações. Objetivamos a promoção de verdadeiras reflexões e o despertar de sentimentos.

Recent Posts

Esta comédia romântica estrelada por Kate Hudson é uma das apostas certeiras na Netflix

Se você é fã de comédias românticas, provavelmente já ouviu falar de "Como Perder um…

4 horas ago

Série sedutora e envolvente da Netflix com apenas 6 episódios vai te fazer perder o ar

É impossível resistir aos seis deliciosos episódios desta série que está disponível na Netflix.

11 horas ago

Filme absurdamente lindo da Netflix tem só 14 minutos e faz as pessoas se desfazerem em lágrimas

Poucas pessoas conseguem passar pelos 14 minutos arrebatadores deste filme sem derramar uma única lágrima.

12 horas ago

Qual é a melhor maneira de converter imagem em texto?

Como estudantes, muitas vezes nos deparamos com imagens de texto que talvez precisemos incluir em…

13 horas ago

Ozymandias: O poema de 200 anos repleto de lições sobre o futuro da humanidade

O poema "Ozymandias", escrito por Percy Shelley em 1818, traz à tona reflexões sobre a…

1 dia ago

Filme de “lavar a alma” disponível na Netflix vai transformar o seu dia

Um filme que pode ser visto por toda a família e que toca o coração…

1 dia ago