O cotidiano da África na pintura de Michel Rauscher e na voz de poetisas africanas

Michel Rauscher é um pintor francês, autodidata, nascido em Alsace.

Grande viajante, ele leva sua infinita curiosidade para as regiões que o fascinavam. Lá ele busca cor, luz e autenticidade. Como mostram as imagens abaixo, sua predileção para o continente Africano.

Os poemas que intercalam as obras foram selecionados por Nara Rúbia Ribeiro e representam a voz da poesia feminina africana.

 
Michel Rauscher

Éramos tu e eu

Éramos eu e tu
Dentro de mim
Centenas de fantasmas compunham o espectáculo
E o medo
Todo o medo do mundo em câmara lenta nos meus olhos.

Mãos agarradas
Pulsos acariciados
Um afago nas faces.

Éramos tu e eu
Dentro de nós
Suores inundavam os olhos
Alagavam lençóis
Corriam para o mar.
As unhas revoltam-se e ferem a carne que as abriga.

Éramos tu e eu
Dentro de nós.

As contracções cada vez mais rápidas
O descontrolo
A emoção
A ciência atenta
O oxigénio
A mão amiga
De repente a grande urgência
A Hora
A Violência
Éramos nós libertando-nos de nós.
É nossa a dor.

São nossos o sangue e as águas
O grito é nosso
A vida é tua
O filho é meu.

Os lábios esquecem o riso
Os olhos a luz
O corpo a dor.

A exaustão total
O correr do pano
O fim do parto.

Dina Salústio

Michel Rauscher

Infelizmente jamais

No instintivo temor das ruas
Maria hesitava nos passeios
até não pressentir
o mais fugaz
presságio.

Contorno de sombra
à berma de uma além –asfalto
fatal presságio da rua
infelizmente já não
a intimida.

Cumprido o funesto prenúncio
já atravessava uma avenida
infortunadamente já nenhum risco
intimida o espírito
de Maria.

Doentiamente eu amaria ver
Maria ainda amedrontada
e nunca como depois
em que já nada a intimida.

Noémia de Sousa

Michel Rauscher

Testamento

À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro…
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda…
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus…
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada…
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor…
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora…
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua…

Alda Lara

Michel Rauscher

Adorno

Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas,
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.

Ana Paula Tavares

Michel Rauscher

Meu Moçambique

Minha África suburbana.
Eu sei-me Moçambique,
cisterna no pecúlio dos deuses.
Um Zambeze inteiro escala a língua
escorre-me pelas pernas
ramifica nos canhoneiros,
laça os peixes inquietos nas sementes
engolfa-se nos mpipis bêbados nas timbilas.
Eu sei-me Moçambique,
no cume das árvores, na sede incontinente
da minha falange, do Rovuma ao Incomati,
no xigubo terrestre dos pés descalços
e em todos os tambores que surdem
das mãos coloridas nos braços em chaga.

Tânia Tomé

Michel Rauscher

Minha casa, minha Africa

Lembra-me Africa
O sol escaldante queimando a pele negra dos homens nos campos
O rosto reluzente das crianças, a cada sorriso branco refletido no olhar delas, correndo pela imensidão do mundo lançado papagaios(pipa)

Lembra-me Africa
Aquelas mulheres lavrando a terra, com os seus filhos atados ao colo
Elas buscando agua a milhas de distancia

Lembra-me Africa
As historias contadas pelos avos a volta da fogueira, ao cair da noite
As danças rítmicas ao som do tambor, corpos suados, espíritos dançantes no centro da roda

Lembra-me África
Aquele o chilrear dos pardais, o roncar dos galos, a morte do milho no pilao ao beijar da alvorada

Lembra-me África
Aqueles mistos, negros, albinos, brancos, num abraco fraterno de manter a união
Bebendo água ardente para estreitar suas relações diplomáticas

Lembra-me Africa
A unica casa de onde as raízes permanecerão vivas no sangue

Hera de Jesus

Michel Rauscher

Construção Horizontal

Na tangente horizontal do olhar escrevo a matéria
num ápice desdobro o silêncio das coisas
e sem me levantar no tempo
moldo os cometas.

Hirondina Joshua

Motivo

Tudo o que vês
não é nada:
ou uma nuvem
ou uma palavra.

Tudo o que ouves
nada mais é:
o vento é lesto
e corre breve.

O que não vês
nem sabes mesmo
é que importava
se houvesse tempo.

Glória de Sant’Anna

Michel Rauscher

NOVEMBER WITHOUT WATER

Olha-me p´ra estas crianças de vidro
cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços
procurando a vida
nos caixotes de lixo.

Olha-me estas crianças
transporte
animais de cargas sobre os dias
percorrendo a cidade até os bordos
carregam a morte sobre os ombros
despejam-se sobre o espaço
enchendo a cidade de estilhaços.

*

Chegas
eu digo sede as mãos
fico
bebendo do ar que respiras
a brevidade

assim as águas
a espera
o cansaço.

Ana Paula Tavares

Michel Rauscher

Seleção de imagens Josie Conti.

+ Nara Rúbia Ribeiro

+ Michel Rauscher– página oficial

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Josie Conti

JOSIE CONTI é psicóloga com enfoque em psicoterapia online, idealizadora, administradora e responsável editorial do site CONTI outra e de suas redes sociais. Sua empresa ainda faz a gestão de sites como A Soma de Todos os Afetos e Psicologias do Brasil. Contato para Atendimento Psicoterápico Online com Josie Conti pelo WhatsApp: (55) 19 9 9950 6332

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