Minha família é o mundo

Por Tatiana Nicz

Esses dias duas amigas que iam viajar viveram um dilema, uma delas por motivos pessoais teve que cancelar a viagem de última hora, a outra seguiu viagem sozinha. Uma das coisas que disse para a que foi é que viajar sozinha pode ser maravilhoso, porque nós nos permitimos muito mais e nos abrimos para encontros inusitados que surgem em qualquer momento da jornada. Quando viajamos sozinhos, ter um pouco de companhia vira necessidade básica e é por isso que nos abrimos. Eu já viajei sozinha algumas vezes, nunca me senti inteiramente só. Com certeza foram as viagens em que mais conheci pessoas diferentes e com elas vivi momentos muito especiais.

Eu conto isso porque hoje vivo algo parecido já que não tenho família perto. Eu tive um “timing” diferente dos meus irmãos, logo que me formei coloquei o pé na estrada, de turismóloga virei turista, entre idas e vindas, passei muitos anos longe. Quando decidi voltar para ficar, minha irmã havia casado e iniciava com sua família uma peregrinação pelo país, atualmente eles moram em Manaus, mas já moraram em outras cidades. Meu irmão também resolveu se aventurar e fez da terra do Tio Sam sua morada. E, por diversos motivos, eu fiquei. Hoje, meu pai se foi desse plano físico, minha mãe está sob os cuidados da minha irmã em Manaus. E eu escolhi ficar.

Ainda tenho parentes aqui, tios e poucos primos, tenho também minha madrasta e seus filhos que são como uma família para mim, tenho amigos de longa data, mas família de primeiro grau e sangue mesmo, da maneira como conheci, pai, mãe, irmãos, esses por perto não tenho mais. Esse poderia ser um texto triste e pedante, mas eu sinto o contrário. O que sinto hoje é o mesmo que disse para minha amiga antes dela viajar sozinha, a solidão nos força a abrir o coração para o mundo de uma maneira que nunca antes imaginamos, porque nos tira totalmente da zona de conforto, porque nos faz precisar do outro. Saber que você precisa do outro é um grande antídoto para o processo de anestesiamento espiritual. O outro te convida a abrir o coração, a ser melhor e a estar presente.

Sim é certo, a orfandade não é algo tão fácil, às vezes pode ser profundamente amedrontador. É mais do que não ter onde almoçar aos domingos, é mais do que não ter um colo para chorar. É muito mais que não ter com quem trocar presentes no Natal. Não ter família presente e perto é coisa séria que exige muita força, é aprender a viver sem nossos maiores conselheiros e incentivadores, é aprender a tomar decisões importantes na vida sozinha. Ser órfã requer um tipo de coragem que preciso reconstruir e revisitar todos os dias. E que todos os dias me faz lembrar que preciso ter mais valia para o mundo.

Com tudo que vivi aprendi muito sobre o valor do tempo. Tempo é algo muito precioso, a vida é mesmo impermanente. A melhor maneira que existe de colecionar boas recordações sem arrependimentos é estando presente naquele momento por inteiro. Eu tive tempo de qualidade com meu pai e meus irmãos. Eu me dediquei para minha mãe. Por isso sei o que é ter uma família, sei a importância que existe nesse sentimento de pertencimento. Esses valores são muito fortes em mim e só porque tive tudo isso hoje não me sinto carente ou sozinha.

Além disso, desde que fiquei órfã de pai e mãe como os conheci aprendi a cuidar melhor de mim, porque ninguém vai me dar colo. Aprendi que caminhar em boa companhia é melhor do que estar sozinha, mas que é melhor estar só do que em má companhia. Hoje tenho uma grande família, uma família estendida feita de muitos bons amigos e parentes que me acolhem e estranhos que rapidamente se tornam grandes amigos. Uma família feita de pequenos gestos de gentileza e fragmentos de tempo e momentos vividos com qualidade.

Depender assim dos outros é um processo bem vulnerável e complexo, ao mesmo tempo que é belo. E de maneira saudável e equilibrada sei que quero e preciso de companhia. Precisar dos outros é aprender todos os dias sobre a força do coletivo, é desejar fazer parte de algo muito maior, é abrir mão do processo extremo de individuação e de egoísmo. Eu quero ser uma companhia mais agradável para mim e para os outros.

Família é puro conforto espiritual, é aquele seleto grupo de pessoas que não escolheram estar ao seu lado (pelo menos não conscientemente) e que te aguentam, independente de quem você seja ou quão diferente e irritante você é. Isso é bom, mas pode ser também muito cômodo. Esse amor tão incondicional e “de graça” nos fortalece e é vital durante a nossa infância, mas como adultos nem sempre nos convida a sermos melhores para o mundo. O mundo em si não tolera suas faltas com a mesma facilidade, então é importante fazer bem o “dever de casa”.

E hoje, sem os eventos e reuniões familiares na agenda, sobra tempo de qualidade para dedicar à mim e aos outros e faço questão de preenchê-lo com bons momentos e companhia; procuro ambientes acolhedores e estar com aqueles que fazem questão de ter minha companhia e que me acolhem de peito aberto; amigos de quem a companhia eu faço questão de ter e quem acolho inteiramente.

E assim a vida tem me proporcionado muitos encontros maravilhosos e inesperados que se tornam atemporais por serem feitos de pessoas presentes e inteiras. É como se eu sentisse em todos que encontro uma pequena amostra de família. Porque no fundo, agora sei, que é isso mesmo: somos todos parte de uma grande e diversa família. Minha família é o mundo.

Tatiana Nicz

Libriana com ascendente em Touro. Católica com ascendente em Buda. Amo a natureza e as viagens. Eterna curiosa. Educadora e contadora de histórias. Divagadora de todas as horas. Escrevo nas horas vagas para aliviar cargas, compartilhar experiências e dormir bem. "Quem elegeu a busca não pode recusar a travessia." Guimarães Rosa

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