Por Daniel Munduruku*
Apresentar os mitos indígenas para crianças é um maravilhoso exercício para reviver as expressões que os povos ancestrais criaram para aceitar a condição humana.
Em tempos antigos, homens e mulheres sentavam-se ao redor do fogo para contar suas façanhas diárias: a luta contra um animal feroz, o susto de encontrar um ser da floresta. Narrar o ocorrido gerava a certeza de um pertencimento ao universo em que se vivia. Naquele momento, todos compreendiam que o universo – contemplado nas noites sem lua – era uma infinita teia.
A vida era um emaranhado de fios tecidos por uma misteriosa mão que pairava sobre toda forma de vida e que era capaz de manipular os acontecimentos naturais (chuva, trovões, nascimentos e mortes), para lembrar a todos sua finitude.
Expectativas de aprendizagem: Ler em voz alta ou recontar mitos de maneira a suscitar o interesse de outros interlocutores; trocar impressões com outros leitores a respeito dos textos lidos; coletar informações sobre os povos indígenas a que pertence o mito lido; traduzir a experiência do mito em diferentes linguagens.
Sabendo-se “criados” e frágeis, homens e mulheres passaram a entoar cantos, criar sons e preces capazes de amainar a fúria natural do Ser Criador. Tinham a convicção que seus poemas, sons, melodias e passos ritmados iriam “manter o céu suspenso” e o mundo não acabaria. Assim, nossos primeiros pais foram criando histórias para que as novas gerações compreendessem e aprendessem como se comportar enquanto faziam sua passagem por esta vida.
A essas histórias o Ocidente denominou Mitos. Essa palavra nem sempre é bem- entendida e algumas vezes se tem a impressão de que estamos falando sobre uma história inventada apenas para “explicar” fenômenos naturais ou justificar uma crença infantil nos fenômenos naturais.
Na verdade, não se trata de justificar crenças se não em aceitar a condição humana que todos possuímos e que não pode ser transformada em fórmulas científicas. A lógica do mito é nos colocar diante do possível para nos levar ao mundo do impossível.
Tem sido assim por toda a história da humanidade. Tem sido essa a “lógica” que tem movido nossos pais primeiros desde os primórdios dos tempos e que nos move ainda hoje, mesmo vestindo outras roupagens para nos encantar. Assim é a linguagem da televisão, do teatro e do cinema. Eles têm feito a magia de atualizar os Mitos que em nós habitam.
O Brasil é um celeiro muito abrangente de mitologia. Nosso país é formado a partir da diversidade de mitos criadores de diferentes grupos humanos que aqui se estabeleceram, trazendo consigo narrativas que contavam seus sonhos, seus medos, seus deuses, suas origens.
Esses povos – e todos seus mitos – atracaram em uma terra onde já havia um conjunto de saberes ancestrais mantidos por um gradiente de povos nativos que receberam o nome de indígenas – mesmo que nativo, oriundo, originário.
Eram aproximadamente 900 povos e 1,1 mil línguas distintas entre si. Habitavam todas as regiões desta terra e tinham uma gama de conhecimentos incompreensíveis aos que estavam chegando, como senhores ou escravos.
Como quem estava chegando, sentiu-se no direito de colonizar, ignorou totalmente os saberes nativos e passou a dizimar ou a reduzir a diversidade em um único (pré)conceito que chegou até os dias atuais: os índios.
Precisamos resgatar essa diversidade que ainda está presente em nossa terra. Começar através dos resgates dos mitos ancestrais é uma fórmula que pode dar certo para aproximar os indígenas das crianças brasileiras.
Vale lembrar que o mito é um método pedagógico de narrar os acontecimentos. Os feitos naturais e sobrenaturais que comumente estão presentes em nosso mundo sempre causaram espanto, admiração e a necessidade de uma explicação racional.
O Mito sempre foi uma maneira de explicar esses fenômenos utilizando uma linguagem simbólica e, assim, aproximando os seres humanos dos feitos dos deuses ou seres criadores. Povos do mundo todo usaram esse método em seus primórdios. Conhecemos muitos deles por conta da educação que recebemos ter origem na Grécia Antiga, o berço da civilização ocidental.
Do mesmo modo, nossos povos indígenas brasileiros desenvolveram essa leitura do mundo para explicar o que para eles era inexplicável: a origem do mundo e das coisas, os ciclos da natureza, nossa condição humana de homem ou mulher, os lugares sociais de cada um, a grandiosidade do cosmos, a vida e a morte.
A resposta para cada uma e de outras dessas questões eram dadas em forma de histórias, a maneira mais simples de fazer as pessoas entenderem a complexidade da vida. Essa contação de histórias nunca foi uma forma de iludir as pessoas, mas de oferecer um norte a ser seguido enquanto membro daquele povo. Dessa maneira firmavam um compromisso de cuidado com o Todo que era de todos e se construía a harmonia necessária para a convivência diária.
O Mito é, assim, para os indígenas brasileiros, uma realidade. Mesmo vivendo em contato com uma sociedade dita “desenvolvida”, os indígenas sabem que, no fundo, o que na cidade se chama desenvolvimento, na cultura ancestral se chama Mito.
Ou seja, continua-se submetido aos mitos, mudando apenas os interesses que estão em jogo. O “progresso” é a atualização de uma narrativa que começou desde um tempo que está perdido na memória da humanidade e que une os povos entre si. Essas narrativas podem, e devem, ser um instrumento importante para a educação cotidiana. Como fazer isso? Embora não haja fórmula mágica para esse tipo de evento, vale seguir alguns pontos básicos.
Imagem de capa: ilustração do livro Como Surgiu : Mitos Indígenas Brasileiros
* Daniel Munduruku é graduado em Filosofia e Doutor em Educação pela USP, é escritor de vasta obra voltada para crianças e jovens
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