Moça, sai dessa de “inimigas”

Eu queria tocar algumas polêmicas do feminismo, mas de uma forma leve, sem academicismos, sem muita pretensão. Tentei falar de um jeito que o leitor pudesse chegar até o fim do texto sem ódio no coração. Gerar mais reflexão do que reação. Se não consegui, fica a intenção.

Não menos de uma vez ouvi de algum homem referindo-se a algum ditado ou crença antiga, como o de que duas mulheres dividindo o mesmo telhado é discórdia na certa. Não me lembro bem o dito detalhado, me lembro bem apenas que ouvi muito nesse sentido.

Também já vi, como certamente você também viu, várias piadas que desacreditam a amizade e as relações de cumplicidade entre mulheres.

Fossem apenas os homens crentes e praticantes da discórdia feminina, creio que ela não passaria mesmo de um dito antigo ou de uma piada. Mas é surpreendente o quanto mulheres alimentam entre si, por vezes, creio, sem perceber, esse vício cultural.

Eu não sou lá uma pessoa muito velha, mas desde quando descobri a existência do feminismo até os dias de hoje, algo em torno de uma década e meia, nunca ouvi tanto falar sobre o assunto como agora. Nunca conheci tantas mulheres que se dizem feministas. Nunca vi tantos homens dispostos a conversar e a ouvir sobre o assunto.

Fossem quantidade e qualidade sinônimos e o avanço da nossa civilização no sentido de superar as diferenças biológicas enquanto determinantes, e compreender que gêneros são construções culturais, seria certo. Todavia, como quantidade e qualidade não são sinônimos, eu fico cá com minhas dúvidas.

De uns tempos para cá tenho ouvido dizer que certas celebridades do momento são feministas e fico confusa. De outro lado, assisto a uma rixa tacanha e ranzinza entre bolinhas e luluzinhas que me lembra a época da escola.

Certos comentários sobre o feminismo, utilizando nomes de grandes intelectuais que escreveram sobre esse assunto (e muitos outros, podem acreditar!) que me deixam em dúvida se as li de fato, ou se li alguma outra coisa e a memória me trapaceou.

Felizmente, até agora, a memória vai bem, obrigada. É somente mais uma questão séria encarada de forma superficial em uma sociedade obesa de informação e anoréxica de conhecimento ou sabedoria, palavra esta mais romântica e de muita estima. Nestes tempos, ninguém está completamente a salvo de ser muito (e mal) informado.

Essa informação toda e sua superficialidade pode ter lá suas vantagens, suas potências, sei lá, perguntem ao homem do futuro, ou à mulher do futuro. Eu, humildemente no presente, penso apenas que agora, sem sabermos muito bem no que vai dar essa nossa caminhada humana, podemos ser um pouco mais amáveis e honestos uns com os outros.

Essa febre de chamar outras mulheres de “inimigas”, “invejosas”, “recalcadas” e mais um bocado de adjetivos que não atingem com a mesma violência os estigmas masculinos, me parece bem incoerente com a postura de qualquer mulher que se diga feminista, que se considere liberta dos padrões sociais ou que diga lutar por isso.

Não adianta comprar briga com homens quando nós mesmas, enquanto mulheres, ajudamos a nos diminuir e a nos desvalorizar umas às outras. Atitudes que alimentam o tal ódio feminino, coisa de tempos longínquos demais para dizer que é invenção dessas gênias da cultura de massa.

Acho bem estranho mesmo, que nem tendo muito gosto por certos tipos de composição musical e logo não os ouvindo a não ser pelo acaso, escute por aí, com certa frequência, por tocarem em rádios de diversos lugares públicos ou comerciais, músicas na voz feminina que, se algo mais fazem, pouco mais é do que ofenderem outras mulheres.

Os argumentos são diversos: quase sempre é pela disputa por um macho. E nesse caso, me perdoem, mas a postura é bem de macho e fêmea mesmo, de marcar território, de brigar, ainda que verbalmente, pelo roubo do “amor” ou do sexo do outro enquanto propriedade. Até aí, não está tudo bem, mas fica pior.

Novas formas de ofender uma mulher chamando-a de puta, prostituta e outros adjetivos, como os que já mencionei, são hermeticamente elaborados pelas compositoras para destilar sua amargura em ter sido traída pelo homem com o qual tinham um compromisso, ou alguma situação do gênero.

Eu fico aqui me perguntando, afinal, mais errado é quem assume o compromisso e fura com ele, ou é a outra pessoa que estava livre, leve e solta? De dois erros, o pior, é sem dúvida o primeiro. É uma questão lógica antes de ser uma questão ética. Só se pode cobrar algo de alguém com quem se tem um compromisso, a canalhice não está no feminino, neste caso. Por que, então, é sempre a mulher que paga o pato?

Para ser honesta, não consigo pensar em exemplo melhor do que os casos de “traição” para revelar a incoerência do tratamento entre mulheres e homens. É uma das situações que mais explicita o quanto realmente não damos conta do feminismo. Vou repetir esse exemplo por aí.

Em contrapartida, temos uma porção de músicas melosas falando da beleza de fulana, canções de açougue, dessas que faltam pouco marcar as mulheres como se fossem bois e exaltar a qualidade de suas partes esquadrinhadas.

Todo mundo adora! Ou é romântico ou faz mexer o corpo. É cultura. Afora os exemplos musicais, vemos essa lógica e outras semelhantes reproduzidas em tantos outros meios e, porque não, pelas pessoas em suas redes sociais e relações pessoais.

Tudo bem, tem muita coisa que é cultura sim, para o bem ou para o mal se isso existir. Mas duvido muito que esses exemplares sejam dos melhores da mesma natureza. Há muita gente boa, com ideias mais interessantes por aí, que só não encontra espaço para tornar-se conhecida.

Achar que é uma pessoa politizado porque está ouvindo um rit do momento “não elitizado”, sem questionar ao menos um pouquinho a verdade disso e mais: o que está para além disso, é meio ingênuo.

Mas cada qual com seu qual, não vejo mais quê em delongar as polêmicas do que dizer do que vim dizer. Aquele ditado dito no início, essa visão das mulheres se odiarem entre si, que os homens gostam de cantarolar de forma tão gozada, só se sustenta porque encontra amparo.

Não bastassem tantas questões sociais graves pelas quais as mulheres passam mesmo vivendo no século do futuro, apesar de todas as conquistas que, vamos combinar, vivem ameaçadas; ainda temos que lidar com uma cultura que nos instiga a odiarmos umas às outras.

Só os grupinhos fechados de amigas é que se valem, mas, no geral, critica-se a aparência de outras mulheres por qualquer pormenor. Critica-se a sua vida sexual. Critica-se a sua forma de pensar e de agir. Critica-se o seu comportamento. Critica-se a sua roupa. Critica-se os seus relacionamentos, suas escolhas. Se for bem-sucedida é porque “deu para alguém”, roubou, trapaceou de alguma forma. Infelizmente, não são só os homens que repetem essas coisas por aí…

E falando em homens, todas as mulheres são potenciais inimigas quando o assunto é homem. E, talvez a pior ingenuidade de todas: há aquelas que se pensam superiores por terem identificações e o respeito aparente de seres do sexo masculino, que não raro se utilizam de elogios que exaltam a sua grande diferença e superioridade em relação às outras.

Moça, sai dessa, pense bem: isso é basicamente o mesmo que o cara dizer que “apesar de você ser mulher…” blá blá blá. Não é exatamente um elogio. Enfim, isso te diminui tanto quanto a qualquer outra. Vai chegar uma hora que, conforme a conveniência do assunto e do contexto, o apesar vai sumir e você será como as outras.

Se nós, mulheres, tendemos a nos olhar com olhares maldosos, com desconfiança, com inimizade e tantas outras coisas que vomitam por aí, é muito mais porque, boa parte das vezes, somos criadas para isso (o cristianismo, me perdoem, é um grande contribuinte para essa causa).

Com poucas exceções, reproduzimos uma cultura que dita que nenhuma mulher é completamente confiável, nem homem pode ser amigo de mulher sem um envolvimento sexual latente. Sempre há um risco. Acabamos isoladas em nosso útero.

Temos concursos de beleza para nos rivalizar ainda mais, cultuando uma suposta ideia de que existe uma beleza feminina maior. Já parou para se perguntar por que não tem “mister universo”? Já parou para se perguntar por que as mais importantes competições que envolvem homens (ou nas quais eles são a maioria) englobam grupos ou algo mais do que ter nascido com uma genética favorável à aparência?

Nessa vida, ao menos no que diz respeito ao que culturalmente se arrasta, nada é coincidência. Ir à luta é necessário, é bacana, mas pouco adianta se não mudarmos certas atitudes cotidianas. Defender feminismo no “face” e fazer cara de bunda pra outra mulher porque você acha ela atraente, buscando formas de humilhação e de achar defeitos para desmoralizá-la é incoerência.

Condenar a moça com quem seu namorado te traiu em vez de dar a real nele, cobrar isso dele, e até juntar com ela para falar mal dele, é incoerente. Na boa, presta atenção, é geralmente isso que homens fariam se fosse você a “traidora”. Não é necessariamente o caso agir da mesma forma, mas, no mínimo, agir com razão.

Não podemos continuar justificando com hormônios e TPMs os nossos equívocos quando os nossos argumentos dizem que as nossas distinções biológicas não nos definem social e intelectualmente. Temos muitos paradoxos para lidar no decorrer da vida até fortalecermos a nossa voz, não por gritarmos mais alto, mas por sermos claras e homogêneas o suficiente para sermos ouvidas.

E, por incrível que pareça, precisamos ouvir também… afinal, gênero não é questão de ter pênis ou vagina, mas de uma construção social sobre o masculino e o feminino, que são variáveis conforme épocas e culturas diferentes. Então, a discussão está para muito além de homem e mulher: diz respeito a práticas, a hábitos, a crenças, a costumes, a morais e mais outras questões que podem perpassar por muito mais do que esse aparente binômio.

Já parou para pensar que o que mais ofende um homem, ou o que mais o condena socialmente, é apontar o feminino nele? Por mais de uma vez, e ainda hoje ocorre algumas vezes, o feminismo é confundido com expurgar o feminino a qualquer custo. E, por vezes, essa parece mesmo uma solução, diante dos nervos cansados que não querem carregar o sofrimento desse gênero.

Às vezes parece que a solução é se igualar aos homens, e muitos homens e mulheres entendem erroneamente dessa forma a questão feminista. Não se trata disso. Pode ser que exista alguma teoria aí que diga o contrário, mas de modo algum é essa a questão. Sequer há sensatez em algo assim.

O que precisamos mesmo é amar mais o feminino, é valorizar mais o que é nosso, nossas singularidades (a sua e a das outras), é olharmos com a mente mais aberta para o que é nasce do universo feminino. Decidir o que vai e o que fica, porque temos propriedade para fazer isso.

Precisamos mesmo é nos conhecermos mais, entendermos melhor o que temos em comum umas com as outras e deixar esses ódios de lado. É prestar atenção que tem feminino em muito mais do que nas mulheres e que só falta isso ganhar seu destaque merecido. É tentar encontrar um equilíbrio e não tentar competir com aquilo que criticamos, o tal do machismo, como se quiséssemos tomar seu lugar opressor. Não queremos, acredito, a existência de qualquer lugar opressor.

Não se trata de tomar o lugar de uma atitude conservadora e agressiva que favorece o masculino para colocar o feminino no lugar. É acabar com a ideia de que existe um melhor e um pior, é tirar o conservador e o agressivo da frase, e deixar o masculino e o feminino em interação. É acabar com a dominação de uma coisa pela outra, para que elas possam se potencializar em vez de se anularem.

E se te parece romântico pensar nessa realização enquanto macro, eu concordo. Mas enquanto micro é perfeitamente possível. Sair desse papo de inimigas, de recalcadas, de desleixada, de puta e etecetera e tal para depois vir pedir homens para respeitarem mais as mulheres já é um começo.

Comece por você, mude seu olhar e seu discurso sobre o feminino e já vai desarmar muito machismo por aí. Comece pelas suas amigas, trazendo outros pontos de vista quando o impulso é reproduzir esses discursos. Comece tendo um pouco mais de empatia com a pessoa que é do mesmo sexo que o seu e está sujeita às mesmas pressões que você.

Sai dessa de “inimigas”, pois se não podemos ser todas amigas, no mínimo, podemos ser cúmplices.

Imagem de capa meramente ilustrativa- cena da série “Xena, a princesa guerreira”

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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