O amor é um sentimento ao mesmo tempo extremamente sublime e misterioso. Será obra do acaso, um simples caso episódico, no qual os amantes são apenas marionetes do destino? Será o amor fruto de esforço e trabalho entre duas pessoas que querem ficar juntas e fazer das suas diferenças um caminho sob o qual possam caminhar? Ou talvez sejam ambas as coisas acontecendo ao mesmo tempo? Bom, nesse terreno não há respostas óbvias, tampouco, definitivas.
Desse modo, preocupando-se mais com as perguntas, Richard Linklater constrói em “Antes do Amanhecer” uma das obras mais reflexivas e poéticas do cinema, a qual percorre de um jeito belo aquilo que existe entre duas pessoas e que pode ser chamado de amor.
No filme, conhecemos Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy), dois jovens a bordo de um trem que corta a Europa. Ele é americano e está vagando pela Europa após um pé na bunda, ela é francesa e retorna de uma visita à avó que mora em Budapeste. De forma episódica, eles começam a conversar dentro do trem e rapidamente uma química é formada entre os dois. No entanto, Jesse precisa desembarcar em Viena para pegar o seu voo no dia seguinte e, então, convida Celine para passar o dia com ele andando pelas ruas da cidade e ela prontamente aceita. O roteiro aparentemente comum se converte em uma obra profunda e cheia de belezas.
A história se desenvolve completamente por diálogos profundos que se desenrolam de forma tão natural que é difícil não se envolver com os personagens e se imaginar naquela situação. A condução do filme é suave, o que reforça a sua naturalidade, assim como a química presente no casal. Além disso, é impossível não destacar as belezas de Viena, que cria a atmosfera perfeita para o envolvimento e os devaneios de Jesse e Celine.
Os diálogos do filme não são apenas sobre amor, mas sobre tudo que possamos imaginar: política, discussão de gênero, divagações sobre o tempo, relacionamentos, família, morte, religião, sexo, tecnologia, mídia, etc. Todavia, todos são bem colocados, suaves, sem exageros e mergulhados em uma poesia singela e reflexiva, em uma espécie de construção filopoética, que marca a trilogia.
Apesar da conversa girar em torno de temas variados, toda ela se direciona para o amor, afinal, o amor é formado entre duas pessoas e aquilo que as forma. É nesse ponto que o filme é genial, pois o amor não está somente em momentos proeminente românticos, e sim, em tudo que cerca um e outro, em toda conexão que vai sendo construída entre os amantes, em cada detalhe que vai sendo mostrado, nas idiossincrasias que percebemos em alguém, as quais por mais que procuremos não conseguimos encontrar em outra pessoa.
Jesse e Celine são pessoas diferentes, com pensamentos distintos, personalidades fortes, mas cada um consegue expor os seus pensamentos, seus devaneios, suas estranhezas, seus medos e seus pecados de forma tranquila em relação ao outro.
É essa tranquilidade que permite a criação de uma conexão entre os dois, bem como, uma paixão, já que raras vezes encontramos pessoas que nos deixam entusiasmadas e interessadas, como se pudéssemos falar sobre qualquer coisa sem pudores ou medo, alguém que nos deixa de um modo tão confortável que nos sentimos completamente nus.
Embora sejam estranhos, “Flutuando rio abaixo, presos pela correnteza”, como diz o verso do poeta, não existe medo em expor tudo aquilo que pulsa dentro de cada um, cada detalhe mais longínquo, cada medo escondido, cada contradição existente nos seus pensamentos, cada confusão que inunda seus corações e, assim, conseguem estar verdadeiramente ligados, bem como, não escondem os seus conflitos, já que em uma relação sempre haverá poros a ser preenchidos e desníveis a ser lapidados, pois duas pessoas por mais conexão que possuam, sempre serão dois seres singulares, com suas individualidades e diferenças. O filme não vê problemas em mostrar isso, já que são os conflitos que moldam a intersecção que une duas pessoas.
“Mesmo que estivéssemos discutindo, por que todos pensam que conflitos são tão ruins? Muitas coisas boas surgem dos conflitos.”
Esses conflitos surgem em função da individualidade presente em cada um dos personagens, das convicções que os formam e os tornam complexos e únicos. Mas, é essa mesma individualidade que nos encanta e faz com que eles se apaixonem, demonstrando a importância de ser um, antes de ser dois, uma vez que como diz Pessoa, é preciso ser inteiro para ser grande, e poder ter o seu eu completo entregue a alguém.
“Somente se encontrar a paz em si mesma encontrará a verdadeira conexão com os demais.”
Uma conexão que pode ser marcada pelo medo. O medo de conhecer mais profundamente alguém e descobrir que este não é tão inteligente quanto imaginamos ou tão interessante quanto queríamos. O medo que todos nós sentimos de nos machucar, de nos enganar, de não poder voltar no tempo, esse senhor sempre escorregadio e veloz. No entanto, a questão não está em encontrar alguém perfeito, porque essa pessoa não existe, e sim, em estar disposto a romper a barreira do medo, das fobias e dos preconceitos, para estar com alguém que mesmo falhando, jamais desviará a sua taça quando uma lágrima nossa cair.
A história de Jesse e Celine nos mostra que o amor surge inicialmente de um caso episódico, mas a sua manutenção depende da forma como estamos abertos às oportunidades, do esforço que ele nos depreende e, sobretudo, da forma pura e sincera como nos colocamos à frente do outro, com nossas dores, nossas angústias, nossos medos, nossos sonhos e tudo que forma o que somos. Nossas idiossincrasias que nos tornam perfeitos para o outro.
Antes do Amanhecer não é um filme sobre duas pessoas perfeitas que se encaixam perfeitamente. É um filme sobre duas pessoas reais, cheias de conflitos e contradições, inclusive, com elas próprias, que por meio do que são se apaixonam. É um filme que mostra o amor com todo o seu existencialismo e poesia, que demonstra a beleza que existe em conhecer alguém profundamente, todas as suas manias e maneirismos, a beleza de se apaixonar quando se sabe tudo sobre alguém. E, mais do que qualquer coisa, é um filme que demonstra que por mais que existam conflitos e imperfeições, não há nada mais belo e divino do que o espaço que há na conexão entre duas pessoas, que aproxima as distâncias e aconchega as almas.
“Acredito que se há algum tipo de Deus, ele não estaria em nenhum de nós. Não em você ou em mim, mas nesse pequeno espaço entre os dois. Se há algum tipo de magia nesse mundo deve estar na busca de compreender alguém, compartilhar algo. Eu sei, é quase impossível conseguir, mas quem se importa realmente? A resposta deve estar na busca.”
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