“Se um homem não descobriu nada pelo qual morreria, não está pronto para viver”Martin Luther King
Quando adolescente acompanhei por alguns meses um tio convalescer no hospital. A experiência foi marcante pois presenciei as dificuldades não só dele, como de outros pacientes que estavam internados. Era um andar inteiro de doentes de Aids e após carnaval e carnatal (o carnaval “fora de época” de Natal/RN), o hospital sempre lotava de pacientes além da capacidade. Em virtude da superlotação, muitos morriam sem o tratamento devido.
Alguns morriam logo, outros sofriam muito antes de partir. Alguns necessitavam de longos tratamentos médicos e doações de sangue. Vi muitos morrerem, meninos, velhos, líderes religiosos, ricos, pobres, enfim. Muitas histórias diferentes, o mesmo fim. Prometi a mim mesma que seria doadora de sangue ao completar a maioridade, bem como que passaria a servir ao próximo com trabalho voluntário.
A intenção era boa, certamente, mas havia um erro fundamental na minha compreensão. Passei muitos anos inerte, buscando uma espécie de elevação espiritual que não chegava. Eu até sou boa pessoa e sei disso, contudo não me considerei “pronta” durante longo tempo. Doar-se ao outro era algo sacro, pio, por demais edificante para mim. A pobre mortal aqui buscou a santidade e não encontrou, claro. A perfeição, menos ainda.
Excesso de exigir e de pensar paralisa qualquer um. Acabei por viver períodos inteiros perdida, pensando apenas em mim, não olhando o outro, o todo em que estava envolvida. Eu não poderia estar mais equivocada! Não precisamos ser perfeitos ou estar prontos para estender a mão para alguém que precisa de nós. Precisamos querer e fazer. Fazer o amor circular em forma de gesto. Quem acha que nunca experimentou isso talvez siga enganado. Não só através de instituições podemos atuar, mas informalmente, para pessoas mais próximas, seja repartindo algo que possuímos com o outro – uma refeição que seja, um conselho cheio de afeto, uma aulinha providencial ou ao menos aquela conversa que alente algum coração.
Ronda na internet um texto da psicóloga Márcia Quintella que aborda esse sentimento que pode ser o de muitos. Ela é enfática: “Trabalho voluntário não é coisa de gente santa”. De fato não é. No início decepcionava-me facilmente nos ambientes de voluntariado, cobrava muito do outro e de mim. Fui chata, melindrosa, desgastei-me em vão, uma vez que não compreendia que os que ali estavam agiram por escolha e autodeterminação, não por perfeição.
É surpreendente a rapidez com que muitos imputam hiprocrisia e falsidade nas pessoas que buscam uma forma de viver menos egoica, mais altruísta. Quando pressupomos essa pureza, exercer um mínimo bem e o voluntariado ficam restritos, quase impossíveis. Criamos uma aura enigmática, quase mística, um muro imaginário, dificultamos o acesso. Se queremos mudar o mundo isso é ótimo, mas doar-se ao próximo não é restrito a quem quer essa mudança, entretanto para quem quer ajudar ou mudar a si mesmo e o outro, no aprendizado mútuo que temos através do contato. Não é algo simples e fácil, é complexo e desafiador, as demandas muitas vezes exigem muitas competências, mas conseguir atuar com eficiência e humildade vale a pena. Ajudar fortalece a empatia, ensina sobre a vida, cria laços, supera dores, diminui frivolidades, gera gratidão, dilata o ser humano, enfim.
Há os que fazem para alcançar ampla aprovação social. É que a gente gosta de se aparecer, ficar bem na fita, aparentar mais que ser, ser humano enfim. Embora muitos iniciem para ter um bom Instagram Stories, acabam sendo tomados pelo oceânico sentimento de ser útil a alguém. Sim, a solidariedade não é puro altruísmo, também confere conforto subjetivo. Não precisamos de uma nova existência para abraçar uma causa humana, largar a gula, deixar o álcool e o cigarro, entrar no monastério ou assumir uma vida enclausurada. Não, não é preciso de nada mais superior. Ainda que mundanos e erráticos, tentemos!
As verdadeiras ligações são estabelecidas com mutualidade, respeito e amor. No voluntariado aprendemos que somos iguais em condições de humanidade, nossas cores mesclam, nossas situações econômicas são silenciadas, nossas crenças são fortalecidas e comungadas. Uma apoteose de sentimentos reais e benignos atravessa tudo. Voluntariar é fazer nascer o ser que queremos ser, é quando amor é ação, a dor é aliviada, as almas se comunicam. A vida de repente completa seu maior sentido.
Alteridade é imaginar-se no lugar do outro. Parece simples e soa romântico demais querer mudar o lugar em que vivemos, mas se não podemos mudar o mundo mudamos as pessoas, e pessoas mudam o mundo. A mínima simpatia por quem está ao lado é essencial. Apesar de palavra gasta ultimamente, é a empatia que leva-nos em direção ao outro, assim como o estio da chuva leva-nos ao colorido arco-íris.
Palavrinhas muito simpáticas em meios de empreendedorismo e de administração, metas e objetivos não são os maiores impulsionadores ou diferenciais para quem pretende fazer a diferença no mundo. Há uma diferença entre ter um objetivo e ter uma causa. Quando resistimos ao universo tão atraente do individualismo, entendemos nossa realidade para além de nós (sim, ela é vasta e consideravelmente maior!) e compreendemos que quando encontramos e abraçamos uma causa para além de nós, desconstruímos e reconstruímos todo o pensamento. Sucesso, realização e felicidade passam a ter significados diametralmente diferentes. Nesse ínterim, também desconstruímos o mundo enquanto lugar da inospitalidade, do cada um por si, do dinheiro regendo.
Dizem que nossa geração é perdida de causas, e que é por estarmos assim que muitos jovens escolhem alistar-se nas fileiras de organizações criminosas ou terroristas pelo mundo afora, na busca dessa causa por que dar a vida. Acredito que as causas existem e estão aí disponíveis para serem abraçadas. Precisamos dar importância e significado a elas, para que sejam materializadas.
Apesar de saber que fazer o bem faz bem, é necessário desfazer algumas ideias erradas, como crer que o trabalho voluntário é mais suave e menos sério que o remunerado. Talvez esse seja o erro mais crasso que existi. Segundo o economista português João Rafael Brites, em palestra do TED / Aveiro, esse tipo de trabalho não é divertimento. Não é uma espécie de atividade para todos e nem todo tipo de trabalho voluntário é bom, portanto nem todos podem fazê-lo indistintamente. Não basta ter amor no coração, é necessário ter formação e qualificação, dar o melhor de si, saber quais os objetivos da instituição e buscar atendê-los com excelência.
Não é porque um trabalho não é remunerado que ele não gera valor. Há sim um custo pecuniário, basta calcular o custo que tal atividade teria no mercado e sabemos seu impacto financeiro. Dizer que são raras as pessoas dispostas a isso é outro equívoco. As Nações Unidas disseram no seu relatório mundial sobre voluntariado 2011 que há 140 milhões de voluntários no mundo. Se fosse um país, seria o nono em número de pessoas.
Há, ainda, uma preocupação legítima, a de que talvez o voluntariado gere desemprego, porque leva as pessoas a trabalharem de graça. Os dados mostram que isso é mito. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística de Portugal, em 2012 a média de trabalho voluntário chegou a 24% nos países da União Europeia. Nos 27 países que compunham até então a União Europeia, aqueles que tinham as menores taxas de desemprego eram os que apresentavam as maiores taxas de voluntariado. Essas duas atividades não são excludentes, contudo complementam-se. Da mesma forma agregadora o voluntariado apresenta-se para contribuir com o bem estar da sociedade, somando com e não substituindo o Estado.
Atualmente, conceitos como solidariedade e voluntariado perderam significados pelo seu uso banalizado e descontextualizado, que às vezes soam com conotação negativa. Situações globais como a do Haiti em 2010 levam a uma mancha na idoneidade do trabalho solidário. Após o grande terremoto ocorrido naquele ano, o país angariou onze bilhões de dólares de ajuda internacional, entretanto tais recursos não foram devidamente destinados à reconstrução do país. Apesar dessas nefastas experiências, é preciso seguir e temos que devolver a força a esses conceitos, e se não for pelo pragmatismo dos números revelados pela ONU acima, que seja pelo que o economista João Rafael Brites falou na mesma palestra já mencionada, pelo voluntariado ser essa “ (…) Declaração suprema da dignidade humana, da dignidade enquanto escolha de onde queremos gastar o nosso tempo. Se tornarmos cada ação nossa refém de uma transação, então nós perdemos a capacidade de sermos livres, seres autodeterminados”.
Acaso o pensamento de que esse é um assunto para sonhadores, pois as ações são ingênuas (embora bem intencionadas) e ineficazes no longo prazo, faz-se prudente investigar o correr dos fatos. Pessoas pensando primordialmente em si não parece ter sido o grande motor de evolução da humanidade até aqui. Em meados do século XX, por exemplo, houve a imunização contra a poliomielite. Todos os anos a doença paralisava centenas de milhares de pessoas. Hoje em dia, a taxa de incidência do vírus desceu mais de 99%. Isso não apenas porque na década de cinquenta surgiu uma vacina, mas porque mais de dez milhões de pessoas no mundo voluntariaram-se para vacinar. Isso é um legado sólido, de larga escala, que não será esquecido.
A falta de moradia, por si só, aumenta consideravelmente o risco de morte de uma família desabrigada. Os acelerados processos de urbanização e de desenvolvimento dos países não podem desconsiderar a realidade de que muitos não possuem condições habitacionais adequadas, sob o risco de naturalizarmos a mortalidade das pessoas a depender de suas condições socioeconômicas. Ter um teto, ao contrário, traz benefícios físicos e morais. Com casa, as pessoas passam a fazer planos para o futuro e abandonam o passado de desesperança.
O que você acha de prover dignidade à vida das pessoas? Essencial ou desnecessário? É por demais poético? É utópico ou plenamente possível? Aí digo que é fácil responder: depende do âmago das pessoas. Tudo começa e termina no ser humano, no que ele acredita, se é indulgente, o que realiza de fato. Pessoas fazem governos, instituições, corporações. Governos em geral têm governado para grandes corporações, para acúmulo infinito de capital. Isso é triste e potencialmente reducionista, pois é possível tornar a vida das pessoas menos indigna, independentemente de ideologias e crenças. Quando o aporte financeiro sobrepõe-se ao humano, a riqueza gerada beneficiará pouquíssimos. É por compreender que uma sociedade equilibrada não é apenas rica e desenvolvida, mas indulgente e promotora de direitos sociais inalienáveis, que entendo humanas e necessárias as políticas públicas que provêm reparos sociais mínimos e assistência pecuniária para a população mais excluída e pobre, por exemplo. Não é esmola, é direito humano universal. Políticas sociais não se resumem à casa, à comida na mesa e dinheiro na conta. Se enxergássemos com olhos mais amorosos, veríamos para além o sorriso no rosto, o quentinho no peito e os sonhos renovados! Como ser contra isso?
Ao ouvir quem quer que seja generalizando ONGs e grupos de voluntários como desocupados ou mal intencionados, entender que é falta de compreensão. Bravatas sempre abrigam arrogância e mentira no substrato. Talvez sejam pessoas habituadas a generalizar, mergulhadas no individualismo, na perda de crença ou mesmo em escusas intenções. É bom saber que trabalho voluntário é imprescindível em múltiplas realidades, que pode gerar impacto social, que pode mudar a realidade coletiva. Por fim, que o que fazemos para nós morre conosco mas o que fazemos pelo outro e pelo mundo permanece, é imortal, sementes plantadas que hão de gerar árvores frondosas e bons frutos.
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