Não querer ser professor é uma questão de “ego”

Imagem de capa: De Repente/shutterstock

“[…] a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens. A educação é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum.”
Hannah Arendt. – Entre o passado e o futuro.

Em uma sociedade que manifesta um crescente pavor do conhecimento, nada mais natural do que a proporcional desvalorização da profissão responsável (ou que, ao menos, deveria ser) pela multiplicação desse ente pernicioso! Assim, também, nada mais natural que em uma sociedade que rechaça o saber, a estupidez seja adorada – é uma consequência lógica, basicamente matemática. E como um sintoma dessa “sofiofobia”, ser professor tornou-se sinônimo de fracasso, de falta de opção, da “via mais fácil”, embora nada de fácil tenha nesta profissão.

Ser professor, na verdade, tem muitas formas de ser, assim como em outras profissões: do geral ao específico, ser um professor de filosofia não é como ser um professor de arte, ser um professor de alfabetização não é como ser um professor de microbiologia. No entanto, poucos consideram essas singularidades do saber e do fazer quando se trata de educação. É certo, apenas, que é preciso desconfiar dos professores, esses frustrados que querem corromper a raça humana!

Sem pretender tomar um exemplo como generalização, acho particularmente curioso o caso das artes. Ouço muito dizer (muito mesmo!), que o professor de artes é sempre um artista frustrado. Pois, analisando os fatos, muitos dos grandes artistas (isso falando apenas em termos do passado), dos mais marcantes foram, de alguma forma ou literalmente, professores, mestres… então, de onde é que vem essa fala afinal? Não sei. Mas desconfio que vem dessas máximas que são criadas para deteriorar algo que ameaça, alguma vingança mesquinha, algo dessa natureza que, então, pela repetição, se naturalizou, mas o sentido nunca houve para dizer que se perdeu.

De um modo geral, escuta-se muito ainda da desvalorização econômica desses profissionais que, por vezes, causa a impressão de que são os profissionais mais miseráveis do mundo no que se refere aos salários. Novamente, os fatos contradizem o discurso. Realmente, vivemos em um tempo, que como a maioria dos outros tempos, talvez todos os tempos, desvaloriza a maior parte das profissões e dos profissionais a não ser por exceção das posições privilegiadas. Pesquisem sobre os salários mais comuns para graduados em direito, psicologia, comunicação e outras profissões que não são tão “mal vistas” – que podem, pelos mais ingênuos, até mesmo serem consideradas prestigiadas –, e verão que a diferença não é tão grande.

Pior, se fizermos uma média honesta entre o tempo de trabalho, os salários, férias e outras questões, em muitos casos, o professor sairá com a melhor. Lugares privilegiados também existem para professores (pasmem!), com graus de dificuldade semelhantes às demais profissões – tudo uma questão de suportar uma árdua carreira acadêmica, por exemplo. Também o professor sairá com a melhor quando se trata da oferta e da procura, já que não é possível que uma sociedade civilizada funcione sem esse famigerado profissional e, apesar de tudo, ainda somos uma civilização. Por fim, há muitos formados em outras áreas que se renderam à prática na educação, sim, por falta de opção, infelizmente.

E se há realmente um problema no que diz respeito ao professor, esse problema está justamente nisso: o de que tenha se tornado uma profissão tão receptiva para os que não têm outra opção, mas também não têm a menor intenção em levar a sério a missão de introduzir e mediar o caminho de outros indivíduos nos universos do saber. Há muitos dos que sequer sabem lidar com pessoas e a formação, tantas vezes sucateada, não ajuda muito nisso. É que somos uma civilização que ainda precisa de professores, mas não queremos que eles sejam “professores demais”. Isso iria atrapalhar o esquema.

Afinal, se as pessoas entendessem bem de oratória, não se enganariam tão facilmente com discursos persuasivos, mas intelectualmente desonestos. Se elas entendessem bem de estratégias de marketing, não seriam tão facilmente convencidas a consumir o que não precisam e, por vezes, o que não querem. Se fossem capazes de se autoconhecer, o que seriam dos livros de autoajuda, dos coachings, das fábricas de chocolates? É que queremos ser civilização, mas não queremos ser civilização demais.

E nesse contexto em que se joga peteca com a educação, dizer-se professor não é motivo de orgulho ou de elogios fáceis. Não se ouve dizer do melhor “mestre” fulano ou ciclano, como de um jogador de futebol ou de uma celebridade qualquer. Não se chama um professor com grau de doutorado de doutor como se chama de doutor um advogado ou um médico (sem grau de doutorado). No máximo, tem-se reconhecimento como intelectual, o que não necessariamente significa ser um professor “foda”, porque a prática de ensinar e a produção de conhecimento através da escrita são coisas completamente diferentes, embora, devessem ser, em algum nível, indissociáveis.

Daí, faz tempo que ser professor não se trata, quase nunca, de uma questão de desejo, de gosto ou, se quiser assim chamar, “vocação”. Porque, na verdade, já não se escolhe muito as profissões conforme a inclinação, mas conforme o prestígio social que elas poderão oferecer. Apesar da ilusão dos salários, não são eles que ditam as regras, caso contrário, vários cursos que se encontram lotados estariam esvaziados. É o prestígio mesmo: uma questão de ego. Nenhuma família faz festa quando o filho passa em uma licenciatura, em pedagogia ou afins, como fazem festa para um que passou no direito, na medicina, na engenharia. Não importa que alguma dessas áreas possam estar saturadas em sem perspectivas realistas de construção de carreira, não importa que ele vá ser um péssimo profissional porque não quer nem um pouco aquilo. Importa o orgulho, a vaidade, poder encher a boca para dizer que o filhote passou em tal curso “superconcorrido”. É realmente preocupante que as escolhas profissionais estejam sendo realizadas de forma tão irracional… o resultado está por todos os lados, para quem quiser ver.

Quanto ao professor e o seu destino cruel, aos que querem defender a profissão, encontram seus méritos, suas delícias, seus reconhecimentos. Travam suas batalhas como tantos mais. Ignoram esse discurso cheio de vazios. Sabem bem que melhor ensina quem também sabe fazer bem e não tem nada de “frustrado” nisso. Frustrados existem em todas as áreas, inclusive nas não profissionais. Olha o “amor”, problema de todos os tempos, fábrica de frustrados em atacado. Mas não se tem tanto demérito no dizer estar apaixonado quanto se tem no dizer ser professor.

E aos que aceitam o desafio, ainda acumulam funções. Porque professor mesmo está sempre experimentando, fazendo paralelo, pesquisando, inventando. Há professores de várias profissões, há professores de vários modos de ser professor. Um profissional multifuncional, que exige a mais sofisticada tecnologia ser-humana. Mas é tanta a difamação acerca desse ser, que começaram até a inventar outros nomes para “disfarçar” tamanha necessidade desses sujeitos que ameaçam tanto quanto a inteligência artificial: instrutor, monitor, treinador, oficineiro e por aí vai. Deveria haver uma diferença clara entre essas áreas de atuação e a atuação de um professor, mas veja as propostas carregando essas novas nomenclaturas e compare. As fronteiras movediças canibais da indistinção engolem cada vez mais as diferenças da prática em boa parte dos casos. Muda-se o nome, muda-se a percepção. Sabemos disso. Se amanhã todos começam a te chamar por um nome diferente do seu, sua identidade será ameaçada e, com a sua desestabilização, tantas outras disfunções emocionais virão.

Em tempos de egos fragilíssimos, importante mesmo é fazer isso: desintegrar, denigrir, sujar, abalar a imagem dessa figura de “poder” que já ocupou lugares sociais bastante privilegiados. Há quem pense que tais mudanças são consequência de uma libertação. Mais ingenuidade para o nosso acervo, que desmoralizar uma “figura de poder”, que continua a ocupar um “lugar de poder” é libertação. Porque, sim, o professor continua a ocupar um lugar de poder, dentro de uma instituição de poder, mas tão desmoralizado, que é fácil a partir da sua figura instaurar ideologias que não são proferidas por ele, culpas que não são suas, mas que se utilizam de sua imagem enquanto intermediário. Ele pode até não ter “poder”, mas é um instrumento de. Um bode expiatório poderoso!

Para escapar dessa lógica perversa seria necessário amar muito a profissão, dominá-la, compreendê-la o suficiente para dançar tango com ela. Mas, uma vez tão desmoralizada, poucos egos se arriscam sequer a considerar que gostariam de ser professores. Vão apenas no último caso. Vão sem preparo, vão sem querer, sem abertura. Não possuem empatia com aqueles outros que estão ali “dependentes” de sua atuação, entram na sala de aula como se entrassem em um ringue. Os bodes expiatórios perfeitos. E os aprendizes, ensinados de antemão a desvalorizar a figura do professor, a desconfiar dela – não de forma crítica, mas de forma dogmática –, a acreditar que a informação basta, isso somado a todos os hormônios e tragédias cotidianas que todos passam, aguardam dopados de adrenalina o soar do primeiro round.

Mas não há produção ou multiplicação de conhecimento sem amor, sem empatia, sem respeito. A vitória não está com nenhum desses lutadores ocupando lugares aparentemente desiguais: está com aqueles que querem perpetuar a estupidez. Está com aqueles que querem controlar o saber, permitindo apenas uma quantia aceitável de conhecimento esparramado como lubrificante da máquina social, mas que, de um modo geral, gozam dos benefícios da ignorância. Enquanto a educação mantém-se funcionando como um ringue de luta e o professor é o “lutador” em quem ninguém aposta, não querer ser professor é uma questão de ego. Ninguém quer ser projetado como perdedor. E nisso, embora não apenas por isso, seguimos diariamente perdendo nossas batalhas… seguimos juntos para o fundo do poço. Ao menos nisso, estamos irremediavelmente unidos.

Paula Peregrina

Peregrina de territórios abstratos, graduou-se em Psicologia, trocou o mestrado e uma potencial carreira por uma aventura na Letras e acabou forasteireando nas artes. Cruzando por uma vida de territórios insólitos, perseveram a escrita, a poesia e o olhar crítico, cristalino e estrangeiro de todos os lugares.

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