Quantas vezes nos vemos “presos” ou condicionados a um comportamento, atitude, pensamento ou sentimento sem que consigamos abrir mão, mesmo que ele não nos traga sentido a existência ou nos proporcione recompensas positivas para a vida?

Pode ser um relacionamento amoroso que nos faz mal, mas que não conseguimos deixar. Um jogo de videogame que não conseguimos parar de jogar e perdemos a chance de realizar outras atividades produtivas. A busca incessante por prazeres e vícios para tentar completar um vazio dentro de nós. Enfim, qualquer atividade compulsiva das quais não temos controle, mas que não conseguimos interromper seu cursar em nossas vidas.

O curta metragem “The Last Knit” (“O último tricotar”) de Laura Neuvonem (Finlândia, 2005) retrata a complexa trama das compulsões!

Determinada a tricotar seus novelos de lã, a personagem se coloca na cena, sentada em uma cadeira diante de um abismo, com suas agulhas e novelos e então começa sua tarefa.

De imediato podemos analisar que se trata de uma atividade solitária e com poucos recursos a sua volta. A paisagem é inóspita, sem outros atrativos. Sua atenção, determinação e energia está totalmente voltada para a tarefa. Nada mais importa ou chama sua atenção, nem mesmo a possibilidade de perder a vida, caindo no abismo.

É exatamente assim que nos colocamos diante de uma atitude compulsiva. Nosso mundo se volta apenas para a necessidade interna relacionada ao impulso, em detrimento de qualquer outra necessidade, até mesmo as de sobrevivência.

Recentemente, temos vistos casos de jogadores compulsivos que deixam de comer, realizar seu autocuidado, manter relações sociais saudáveis para passar horas a fio em frente a tela do computador em jogos on-line. Este é um bom exemplo para retratar esse movimento.

E assim, segue a personagem, perdendo-se entre as meadas do seu novelo.

O impulso de executar o próximo ponto é maior que qualquer decisão racional a respeito de si mesma. Neste caso, a vontade consciente está subjugada pelo impulso inconsciente, cuja raízes e significado a personagem desconhece.

De maneira semelhante, algumas mulheres compram compulsivamente roupas, sapatos e objetos de qualquer natureza, sem entender porque o fazem e depois se veem arrependidas diante da energia gasta desproporcionalmente quando se defrontam com a realidade da continuidade de seu vazio existencial. Aquilo que compram não as preenche!

Para Jung, “(…) quando meu consciente encalha por não encontrar saídas viáveis, minha alma inconsciente vai reagir a esta estagnação insuportável.”

O que poderia se tornar um trabalho criativo e útil, perde seu propósito! A personagem deixa seu próprio destino nas mãos das agulhas de tricô, nas mãos do inconsciente!

A trama da personagem nos remete a lenda de Aracne.

“Filha de Ídmon, um rico tintureiro de Cólofon, Aracne era uma bela jovem da Lídia, onde o pai exercia sua profissão. Bordava e tecia com tal perfeição, que até as ninfas dos bosques vizinhos vinham contemplar e admirar-lhe a arte. A perícia de Aracne valeu-lhe a reputação de discípula de Atená, mas entre os dotes da fiandeira não se contava a modéstia, a ponto de desafiar a deusa para uma competição pública. Atená aceitou a provocação, mas apareceu-lhe sob a forma de uma anciã, aconselhando-a a que depusesse sua hýbris, sua démesure, seu descomedimento, que não ultrapassasse o métron, que fosse mais comedida, porque os deuses não admitiam competição por parte dos mortais. A jovem, em resposta, insultou a anciã. Indignada, Atená se manifestou em toda a sua imponência de imortal e declarou aceitar o desafio. Depuseram-se as linhas e deu-se início ao magno concurso. Atená representou em lindos coloridos, sobre uma tapeçaria, os doze deuses do Olimpo em toda a sua majestade. Aracne, maliciosamente, desenhou certas histórias pouco decorosas dos amores dos imortais, principalmente as aventuras de Zeus. Atená examinou atentamente o trabalho da jovem lídia. Nenhum deslize. Nenhuma irregularidade. Estava uma perfeição. Vendo-se vencida ou ao menos igualada em sua arte por uma simples mortal e irritada com as cenas criadas por Aracne, a deusa fez em pedaços o lindíssimo trabalho de sua competidora e ainda a feriu com a naveta. Insultada e humilhada, Aracne tentou enforcar-se, mas Atená não o permitiu, sustentando-a no ar. Em seguida, transformou-a em aranha, para que tecesse pelo resto da vida. Esse labor incessante de Aracne-Aranha, no entanto, configura uma terrível punição” (Brandão, 1987)

Tecer é em essencial um trabalho criativo. Segundo Chevalier, “tecido, fio, tear, instrumentos que servem para tecer (fuso, roca) são todos eles símbolos do destino. Servem para designar tudo o que rege e intervém no nosso destino (…)Tecer é criar novas formas”.

Simbolicamente o fio representa o vínculo entre os diferentes níveis psicológicos (inconsciente e consciente) e também o “agente que liga todos os estados da existência entre si” (Chevalier).

Neste sentido podemos pensar que a personagem está compulsivamente tentando desenrolar seus novelos de lã, transformando-os numa peça útil, para enfeitar-se ou aquecer-se em dias mais frios. Aqui novamente podemos relacionar com o sintoma compulsivo. Os comportamentos compulsivos são tentativas do indivíduo de solucionar sua problemática, suprir um vazio, suprimir uma angustia. Todavia, ao invés de fazê-lo de maneira criativa, compreensiva e direcionada, guiado por uma conversa entre consciente e inconsciente, ele sucumbe as vias do sintoma. Sua tarefa torna-se incansável e interminável. E ele se vê preso em uma verdadeira teia de ilusões.

O processo de fiar também pode ser comparado ao fio produzido pela aranha ao construir sua teia. Neste caso, criar significa “fazer sair da sua própria substância, exatamente como faz a aranha, que tira de si sua própria teia” (Chevalier).

Podemos entender que a solução para as angústias encontra-se dentro do próprio indivíduo e não fora dele.

Os novelos de lã se acabam e a personagem passa a usar seu próprio cabelo para tecer. Motivados pela história de Sansão que, ao perder seus cabelos também perde sua força, podemos compreender aqui que, a atividade consome a força vital da personagem.

Sem escolha e sem percepção consciente do problema a personagem segue na tarefa.

O que era para ser um cachecol se transforma numa verdadeira corda que puxa a personagem em direção ao abismo, cuja força aumenta proporcionalmente a continuidade da construção da peça.

Assim, a tecelã fica presa a sua compulsão e ao fim destinado por ela – cair no abismo.

A queda no abismo está relacionada a força centrífuga inconsciente que impulsiona a personagem a se deparar com as origens do seu problema.

Sobre o abismo, temos na literatura alguns simbolismos interessantes a discorrer.

Segundo dicionário de Símbolos de Juan-Eduardo Cirlot, “toda forma abissal possui em si mesma uma fascinante dualidade de sentido. Por um lado é símbolo da profundidade em geral; por outro lado, do inferior. Precisamente, a atração do abismo resulta da confusão inextricável desses dois poderes”.

Para Chevalier, “nos sonhos, fascinante ou medonho, o abismo invocará o poderoso inconsciente; aparecerá como um convite a exploração das profundezas da alma, para livrá-la de seus fantasmas ou deixar que se soltem”.

Neste ponto da história nos vemos mobilizados e torcendo para que a personagem sobreviva. Trava-se a luta entre vida e morte, perda e transformação. Torcemos pela sua sobrevivência, mas torcemos também para que ela se desvencilhe do seu sintoma.

As agulhas a salvam do abismo, o que pode nos levar a pensar que, como um veneno e seu antídoto, o que nos deixa doente é o que também nos cura. Assim, sintoma e cura fazem parte do mesmo processo. Uma está intrinsicamente ligada a outra.

É preciso compreender o significado de um sintoma para que ele seja integrado e superado na psique.

Se a nossa personagem tivesse esse ganho de consciência durante a subida do abismo, poderíamos ter esperança de sua cura.

Mas novamente ela se senta em sua cadeira, nas mesmas condições que se via anteriormente e busca um novo objeto para simbolizar sua compulsão. Encontra uma nova via para canalizar o impulso, uma vez que esse não foi compreendido e integrado.

Quantas vezes vemos pessoas trocando uma compulsão por outra? Emagrecem, mas passam a comprar. Param de fumar, mas começam a beber. E tantos outros exemplos que podemos encontrar vida a fora…

Assim, é preciso “encarar o abismo” e suas profundezas, a fim de ressurgir tal qual uma fênix, transformada e renovada para a vida!

Do contrário, as vias escolhidas podem ser novamente tentadoras, como foi a tesoura para a personagem da história.

A tesoura, símbolo do “atributo das fiandeiras que cortam o fio da vida dos mortais”, torna-se aqui um objeto ambivalente, expressando a criação e a destruição, o nascimento e a morte.

Ficamos nós expectadores, com a esperança de que, envolta mais uma vez em sua dinâmica compulsiva, nossa personagem tenha mais sucesso da próxima vez!

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, J. S. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1986, V. 2.

CHEVALIER, J. GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos – Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 24ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.

CIRLOT, J.E. Dicionário de símbolos. São Paulo: Centauro, 2005.

JUNG, C. G. A prática da Psicoterapia: Contribuições ao problema da psicoterapia e à psicologia da transferência. In Obras Completas. 7ª Edição. Petrópolis: Vozes, [1971], 2011, v. XVI/1.

Autoras:

Lilian Marin Zuchelli – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana pela PUC-SP. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Institiuto Sedes Sapientiae. CRP: 06/23768

 

 

Marcela Alice Bianco – Psicóloga Clínica e Psicoterapeuta Junguiana formada pela UFSCar. Especialista em Psicoterapia de Abordagem Junguiana associada à Técnicas de Trabalho Corporal pelo Sedes Sapientiae. CRP: 06/77338

Psique em Equilibrio

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