Nise da Silveira entendeu os estados do ser vividos e difundidos por Antonin Artaud. Disse não à loucura como doença mental, afirmando a anti-psiquiatria. Não se deixou enganar pelos objetos inventados pelos loucos do hospício e tomados pelos críticos como obras de arte. Nem a vida dos seus loucos nem a sua, podiam ser apanhadas pela psiquiatria ou pela arte dos mecenas, críticos, avaliadores e historiadores.
Nise da Silveira, como Antonin Artaud, não concebia a arte separada da vida, teatro alheio à minha existência, loucura como doença, artista como momento profissional. Louco, artista e terapeuta ocupacional, como ela preferia se chamar, ao lado de bichos, amigos e amorosidades, atentam contra as estabilidades. Vivem intensamente até perderem-se de si. Alguns, às vezes, demoram mais para retornarem, vivem mais longamente certos estados do ser, silenciosos, alheios, sequestrados. Ali onde não há sociedade — lá onde não há mais a tirania do conceito de sociedade propunha, no século XIX, o filósofo libertário Max Stirner: é preciso acabar com a ideia de sociedade para que pessoas livres inventem associações livres. Naquela zona cinza para tantos de nós, atordoante e inebriante de preto e branco e de cores para outros tantos de nós.
Diante de Dioniso, irracional, instintivo e paixão, apartado de Apolo, Nise quer Apolo (Espinoza) dionisíaco (Artaud). Dioniso é teatro, é tragédia, é abalo na normalidade, nos democratas juramentados, nos tiranos da ocasião, nos bons-moços defensores de direitos, deveres e castigos. Onde se castiga mais: na prisão, no hospício, no asilo, na escola, ou na sua própria casa? Eles querem punir mais para com isso acabarem com as doenças, os crimes, as rebeliões. Eles não querem acabar com a doença em nome da saúde, mas a glorificação do espírito.
Dioniso torna impossível confinar a vida na casa, no sexo seguro, na escola, na prisão, na empresa, na burocracia, no partido, no governo, no teatro, ou na grande arte. Dioniso afeta: atinge o alvo e provoca amizades. É atuação pública o tempo todo; não é um estado alterado de consciência circunstancial. Não é o junky, não é o clubber, não é o criminoso ou o louco. Não é o privado, a particularidade, o efêmero. Ele está aqui, sou eu, você e o cara ao seu lado. É trágico. Ele é o avesso.
Aristóteles, na Poética, quer fazer crer que a tragédia opera pela mímese, repetição das marcas deixadas pelos deuses gerando medos e temores que, pela encenação, purifica as paixões. Nietzsche, em Nascimento da tragédia, afirma: “do interior do homem também soa algo de sobrenatural; ele se sente como um deus, ele próprio caminha agora tão extasiado e elevado, como vira em sonho os deuses caminharem. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a força artística de toda a natureza, para deliciosa satisfação do Uno-primordial revela-se sob o frêmito da embriaguez” (p.31).
Domitilla Amaral, chamada por Nise da Silveira para uma leitura dramática de As bacantes, de Eurípedes, provoca a amiga, propondo utilizar como ator na encenação somente Rubens Corrêa, no papel de Dioniso. Os demais deveriam ser os loucos do Centro Psiquiátrico Engenho de Dentro. Nise vacila. Domitilla vai até Mihail. Ela o descreve como sendo “o russo educado em Instambul, que encantava a todos pela nobreza de sua cultura” (in Revista Quaterni 8, p. 88). Mihail era um louco, pelo qual Nise tinha especial carinho. Foi-lhe entregue o papel de Tirésias, o cego vidente. Dirigindo-se ao rei Cadmo e falando sobre Penteu, o que desafia Dioniso, diz Tirésias:
“É hora de fazermos preces, tu e eu,
por um demente, embora seja tão feroz,
preces pela cidade, e conjurar o deus
a não lhe trazer males nunca imaginados.
Agora segue-me. Segura teu bastão
coberto de ramos de hera. Trata, amigo,
de orientar meus passos enquanto me amparo,
pois seria ridículo para dois velhos
caírem juntos. Siga-nos quem tiver ânimo,
pois temos de servir a Báquio, o deus
filho de Zeus. Mas deves ter cuidado, Cadmo,
para que o rei Penteu não faça entrar luto
em tua casa (não me inspira o dom profético;
os fatos falam e são bastante eloqüentes).
Estando louco, ele procede loucamente”.
(As bacantes, Eurípedes, tradução Mário da Gama Kury, Jorge Zahar Editor, p.
223).
Conta Domitilla Amaral que “o público inteiro sentiu a esmagadora presença de Mihail; quando ele se levantou e, de olhos fechados, falou seu longo monólogo, alheio a tudo e a todos, houve um momento mágico em que os deuses baixaram” (Idem, p. 89). Nise era assim, sabia mudar. Tinha prazer em correr perigo. Os estados do ser são cada vez mais perigosos, lembra Artaud. Carlos Pertuis, outro interno, humilde
sapateiro e guru de Nise, segundo Domitilla, dizia: “que culpa tenho eu de querer a luz da sombra” (Idem, p.90)…
Nise desacatou a ditadura, a psiquiatria, os estabelecidos. Era afirmadora. Era libertária. Não suportava desigualdades, nem tampouco uma igualdade uniformizadora. Inventou em lugar do conceito de Terapia Ocupacional, a noção emoção de lidar, termo criado por um “cliente da Casa das Palmeiras” (Frankin Chang, idem, p.24). Os terapeutas ocupacionais são orientados para funcionarem com afeto catalizador, um estar ao lado, uma relação de horizontalidade, de abolição da hierarquia entre razão e desrazão, afirmação de legisladores, provável emergência de outros estados do ser. É ser afetado, é troca de afetos espontâneos. É algo que se passa entre cliente e bicho também, pois os animais, como as pessoas, são catalizadores de afetos. Da cadela Caralâmpia que se aproxima dos doentes no hospício ao seu querido e mais amado ente, o gato Carlos, que viveu a seu lado por 19 anos e morreu um ano antes dela, Nise da Silveira não deixou de reparar que a vida não existe para ser conservada. A vida está em expansão dentro e fora de mim. A Casa das Palmeiras, por isso mesmo e devido à impossibilidade de acabar com a ditadura da psiquiatria é, nas palavras de Nise, “um pequeno território livre” (apud Idem, p.27). A Casa das Palmeiras, lugar de arte e arteiros, é um não-lugar que evita internações.
Nise da Silveira, aprendeu a lidar com estados do ser. Uma paciente chamada Luiza, conta Luiz Carlos Mello, tida pela psiquiatria como esquizofrênica crônica, quando soube que a doutora Nise tinha sido presa pela polícia da ditadura de Vargas, devido uma delação de certa enfermeira, não teve a menor dúvida: “deu uma surra extraordinária na enfermeira, deixando-a estendida no chão” (Idem, Luiz Carlos Mello, p. 9). É preciso sair do verbal, experimentar a vida, perigos, perder o controle de si. Com Artaud e ao seu lado, é preciso rebeldia e agressão. O livro Artaud, uma nostalgia do mais foi publicado contendo artigos de Nise, do ator Rubens Corrêa, do filósofo Marco Lucchesi e do ex-paciente psiquiátrico Milton Freire. Mas Nise, segundo
Lucchesi, não merece etiquetas… ou qualquer forma que não ajude a perceber a marca diferencial de seu trabalho” (Idem, p. 51). Quando ela nasceu, em 15 de fevereiro de 1905, diz Agilberto Calaça (Idem, p. 201), essa filha única, que casou e não teve filhos, recebeu o nome de Nise em homenagem à musa inatingível e rebelde do poeta inconfidente Cláudio Manoel da Costa.
Nise foi a Jung, ao ministro Pinotti, em 1959, requerer a liberação dos quadros do Museu do Inconsciente que tinham seguido para Zurique. Recebia amigos, artistas, estudantes e estudiosos para com eles dialogar, tomar chá, inventar um neto, Gilberto Gomath, que a via uma Nise dionisíaca provocando as agradáveis tardes de Domingo que chamou de Domi/Nises. Andou pelo cárcere, saiu e voltou para trabalhar no hospital ao lado de seus clientes. Foi aposentada. Regressou no dia seguinte ao hospício inscrevendo-se como voluntária. Não cedeu a ordens superiores e às hierarquias. Ao contrário, com persistência, estremeceu-as. Permaneceu jovem. Muitas pessoas falaram e ainda falarão de Nise. Às vezes demora um pouco. Vivemos um tempo, como o do personagem de O inominável de Samuel Beckett, o de um pensar sem corpo. Quem sabe, em breve, as associações, avessas à sociedade, façam proliferar o corpo sem órgãos, como queria Artaud, livre da hierarquia da organicidade a ele atribuída pelas funções dos órgãos; um corpo sem órgãos tomando
a nossa história que é a das marcas no corpo. Um devir dionisíaco, desconcertando o presente.
Nise da Silveira diante das luzes da psiquiatria, da maioridade atingida com o cartesianismo, nos sugere a emoção de lidar, a liberdade de pensar livremente pela razão do outro. Não há mais doente mental, não há mais o outro, aquele ser que em nossa cultura, para não ser dizimado, precisa aceitar ser subordinado, tornando-se o mesmo de mim. Um outro que é negro, pobre, nordestino, habitante da periferia, um diferente, aquele para quem se dá o direito para ele/ela ficar onde está, o direito de gueto, de ser estranho e portanto, como todo direito, dever de ser o Mesmo, aquele que me domina. O antropólogo Claude Lévi-Strauss dizia, em Tristes trópicos, que nossa cultura se opõe à dos primitivos. Esta é antropofágica. A nossa é antropoêmica, não suporta os desvios, os vomita para fora: prende, interna, confina, exila, mata. Nise quer o outro sim, o perigoso de mim e de você, estágios do ser. O terapeuta e o cliente como legisladores lado a lado. Ah, você dirá, ela não disse nada disso. É, te direi acrescentando, é muito pouco! Você e eu sabemos que ela não investiu em conservação, mas em expansão da vida. E todo aquele que sobre isto se atira abre possibilidades para que outros parceiros, construam outros mapas, gerando uma cartografia libertária.
Nise, diante da razão e de sua forma científica, lança mão da razão do outro: literatura, jogos, bichos, objetos e texturas, arte não como hedonismo mas como existência. Existência não como possibilidade de integração ou aceitabilidade mas como desestabilidade à razão e às instituições do são, do normal e do boçal. Não se
está em busca de identidades, mas de diferenças na igualdade. Uma coisa para poucos, uns, mas que poderá ser para muitos.
Emoção de lidar, no hospício, na casa das Palmeiras, na sua casa, no seu caminho nômade. Não mais pacientes, mas parceiros nesta longa viagem pelos estados do ser, perigosos momentos da arte de viver.
“A vida não é isso ou aquilo”, disse-me Nise durante a gravação do vídeo que leva seu nome, “a vida é isso e aquilo”. Diante da centralidade, a descentralidade, a titânica e contínua luta entre autoridade e liberdade, a inequívoca existência de Apolo Dioniso. Vida são relações de força!
É preciso segredar como na amizade privada dos amigos tanto quanto conspirar, ser subevrsivo na intimidade e na polis. Mas é preciso ser leal. A amizade é particular e pública, estabelecida entre os envolvidos entre si contra o estado geral das coisas (o hospital, o governo, o Estado, a psiquiatria, o teatrão…). É preciso amorosidade dos envolvidos entre si (os amigos) para com os clientes (sob múltiplos
estados do ser). Amizade privada entre amigos, atingindo o público, investindo em antipsiquiatria.
Viver os diferentes estados do ser é também abolir a sociedade; é inventar as igualdades longe das uniformidades; é se libertar da mesmice em rezar por direitos que nada mais são do que uma nova forma de confinamento. Diferentes estados do ser é reconhecer que não somos indivíduos, mas divíduos esse ser capaz de afirmar a impossibilidade do indivíduo e de sua utopia, a ilusão da autonomia.
Nise da Silveira dizia que preferia a loba faminta ao cão gordo e encoleirado: “a palavra que mais gosto é liberdade. Como gosto desta palavra” (Idem, apud Bernardo Horta, p. 70). Nise escreveu poucos livros, mas proferiu muitas palavras vivas, como estas: “ouçam bem: nós todos caminhamos para uma diferenciação. A massa dos iguais é um verdadeiro muro e, para não se amoldar a ela, de novo, é preciso lutar sempre” (Idem, p. 72).
Foucault, no final de sua obra se preocupou com a ética. Não com a ética como conjunto de prescrições particulares diante da moral. Mas ética livre de moral, inventada, um estilo de vida, uma estética da existência. Dizia Foucault que ela diz respeito a critérios de estilo. Nise, os terapeutas, os clientes inventam emoções de lidar, afetos catalizadores, subversões, liberações, estados do ser. Perigo!
Perigo para a sociedade!
“Quem no seio de certas angústias, no âmago de alguns sonhos não conheceu
a morte como sensação que despedaça e é maravilhosa?” (Antonin Artaud).
Edson Passetti
Professor do Depto. Política e Pós-Graduação em Ciências Sociais
Coordenador do NU-SOL (Núcleo de Sociabilidade Libertária) da PUC-SP
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