Sou contra o aborto e a sua legalização. Isso posto, vou argumentar. Antes de qualquer coisa, devo esclarecer que sou a favor das causas feministas e acho que ser contra a legalização do aborto não me coloca contra elas. Ofereço, a partir daqui, um novo ângulo para repensar tudo isso.
O tema é inesgotável e acho que aprofundarmos qualquer discussão é sempre válido. Tentarei verbalizar parte do que penso. Espero contribuir para o debate trazendo novos questionamentos e novas reflexões para o tema que não vi mencionados, ao menos, nos textos que li. Estou aberta a mudar tudo o que aqui será escrito; desdizer, diria Guimarães Rosa. Mas peço que fundamentem e ataquem os pontos que serão colocados ou que venham com informações diferentes dessas que mencionarei para que cresçamos todas no tema.
Primeiramente, a minha posição, óbvio, nada tem a ver com religião. Não acredito em Deus e muito menos no Diabo.
Quero começar pela palavra “escolha” que está diretamente ligada ao verbete “liberdade”. Li muito antes de vir aqui expor a minha opinião. Em todos os textos, os argumentos a favor da legalização do aborto, sem exceção, a palavra “escolha” foi usada de forma deliberada como se esse conceito fosse algo trivial. O discurso de uma forma geral afirma que “a mulher tem direito de fazer o que quiser com o próprio corpo, tem o direito fazer suas próprias escolhas e viver como desejar, pois viver sem poder escolher não é nada mais nada menos do que transformar a vida numa prisão das circunstâncias.”
Ledo engano. Ao meu ver, nem mulher nem homem são livres para escolha alguma. Sequer a palavra “escolha” faz algum sentido se a analisarmos profundamente.
Pensemos…
Há grandes possibilidades de que as “nossas escolhas” não sejam exatamente nossas, mesmo quando temos total certeza de que as tenhamos tomado de forma consciente. Para começar, se acreditamos na ciência, que o universo é previsível e segue um conjunto determinado de regras, ou seja, que cada coisa no universo que temos observado até agora segue algumas diretrizes específicas e nada está isento da influência de forças externas, então, por que nós – os produtos do universo – estaríamos isentos de influências do ambiente? Como fundamentar o livre arbítrio, a vontade que causa algo mas não é causada, numa mente inserida num mundo físico onde nada quebra a regra da causa e efeito?
Se a Teoria da Relatividade estiver certa, passado, presente e futuro não passam de uma ilusão de nossa mente, como afirmou Einstein. Consequentemente, causa e efeito não fazem sentido já que a causa sempre precede o efeito e, por tabela, a palavra “escolha” cai por terra.
Ok. A ciência também pode ser um tremendo discurso romântico e subjetivo, mas trazê-la para a discussão nos permite perguntar se e quais forças externas desempenham algum papel na nossa tomada de decisões. E só pelo fato de flertar com a ciência sem sequer aprofundarmos em seus fundamentos já surge a dúvida: será que a razão pela qual a intuição nos diz que temos um livre-arbítrio não seria porque a nossa mente altamente limitada não consegue identificar todos os fatores que afetam a nossa “escolha”?
Se acreditarmos nas ideias levantadas por Freud, veremos que não agimos de forma livre mas sim conforme nossos impulsos e desejos inconscientes, como se fossemos reféns dos mesmos. Desta forma, acreditamos estar agindo a todo instante conforme queremos e escolhemos sem notar que na verdade, estamos satisfazendo desejos que se encontram em nosso inconsciente. E vejamos como isso faz sentido: o que nos leva a consumir certos produtos, a trabalhar em certas atividades e a nos relacionar com determinadas pessoas? O quanto condicionamos nossos atos aos resultados que estes trarão? O quanto estes resultados que almejamos são construídos pelo meio social em que vivemos? Dito de uma outra forma: se um objeto lançado por nós tivesse consciência do seu movimento não poderia ele se julgar livre para perseverar nesse movimento na medida em que ignorasse por completo o impulso que demos a ele? Em que medida aquele que crê ser livre não é tal e qual uma pedra lançada ao vento que ignora a força que a impeliu?
Afinal, “o que, então, determina a minha vontade?”, perguntaria você. Eu não sei ao certo, mas se você acha que é você mesmo, perceba o quanto isso é incoerente: se é você que determina a vontade, isso significa pressupor um “você” de certa natureza que determina necessariamente a vontade. Dizer que “você” determinou sua vontade só faz algum sentido na defesa do livre arbítrio se “você” não é determinado por nada (ou por Deus). Porém, o que seria algo que não é determinado por nada (ou por uma força superior)? Complicado quando pensamos seriamente a respeito, não?
Ainda na esteira da ciência, pergunto-lhe: uma célula individual tem o livre-arbítrio? E uma bactéria, teria? Ou uma flor? E uma girafa, um cachorro ou um leão, por exemplo – será que eles têm livre-arbítrio? Em que ponto da nossa história, essa tão contraditória e ilusória ideia de liberdade para escolher apareceu em nós? E por quê? Em todas as culturas do planeta o livre-arbítrio é considerado como real? Por que na nossa cultura acreditamos e usamos deliberadamente a palavra “liberdade” que sequer é ponto pacífico a sua definição no mundo? O fato de a ideia da escolha vir associada a outra de julgamento não é por acaso: a última precisa da existência da primeira. Isso é algo simples de compreender, afinal, quais seriam as consequências para a sociedade, então, se descobríssemos que não existe livre arbítrio? Como a doutrina da condenação e salvação se sustentaria?
Entrando agora diretamente no tema, o que estão querendo quando defendem a legalização do aborto é mostrar que abortar não deve ser condenável. Na defesa da legalização, alguns argumentos se repetem:
“Todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que as mulheres mais ricas procuram boas clínicas e abortam em segurança. E todos nós, que não somos hipócritas, sabemos que são as mulheres mais pobres que morrem em procedimentos clandestinos, porque não têm dinheiro para pagar as boas clínicas.” – Eliane Brum
“Aborto é de fato um problema complexo de saúde pública e a sua legalização é uma necessidade. O sofrimento das mulheres e das famílias que vivenciam o abandono e a ausência do Estado quando precisam ou desejam abortar deve ser dimensionado por todos os atores públicos, se é que ocupam esta posição para defender os interesses públicos.” – Por que legalizar o aborto?, na Revista Carta Capital por Ana Maria Costa — publicado 28/09/2013
Ou seja, defende-se a legalização com o argumento que as mulheres pobres são as que mais sofrem com isso. Com a criminalização do aborto, as mulheres ricas vão para clínicas privadas, onde são muito bem tratadas, e as pobres são obrigadas a ir a lugares sem as mínimas condições necessárias. Logo, as ricas são bem cuidadas e as pobres sofrem risco de vida. Legalizar o aborto, portanto, implicaria em também proteger as mulheres pobres já que, sendo crime ou não, querendo todas abortam.
Li textos citando que nos Estados Unidos, onde o aborto é legalizado, cerca de 4 em cada 5 mulheres que o requerem são negras ou latinas. Seria diferente por aqui no Brasil? Estamos defendendo o que afinal: a legalização do aborto ou uma limpeza social? Qual raça, coloquemos assim, que seria mais impedida de nascer quando o aborto for legalizado? Estamos protegendo as mulheres negras ou impedindo que negros nasçam?
No mais, por que as pesquisas mostrando o quanto o aborto prejudica o corpo da mulher, além dela também correr risco de morrer como em qualquer outra operação, não são explicitadas? Quem as está escondendo e por quê? Existe um aumento da probabilidade real da mulher após o aborto sofrer de problemas de ordem psicológica, ter um aborto natural em futuras gestações e desenvolver outras doenças mesmo tudo sendo feito, digamos, nas condições ideais. Ainda que alguns mencionem essas colocações, fazem-no como nota de página.
“Uma mulher não deveria gerar uma gravidez que não desejou, se uma mulher tomou todos os cuidados e usou os métodos contraceptivos, ao se ver vítima do destino, tendo uma gravidez indesejada deveria poder interromper a gravidez. Se não há dolo, não deve haver consequência.”
Por que não concentrar toda essa energia em intensificar os métodos de prevenção, as opções de encaminhamento para adoção e sobre as causas das mulheres abortarem?
Percebam que não há mais liberdade alguma e sim mais prisão. Estudos mostraram que muitas recorrem ao aborto, sejam elas brancas ou negras, com medo dos danos às suas reputações e muitas confessaram que a gravidez foi fruto de uma relação socialmente reprovada. Mais uma vez pergunto: em que medida essa mulher está fazendo uma “escolha” quando só lhe resta essa opção? Em que medida ser livre é agir por medo? O que mais é um instrumento de opressão aos direitos das mulheres: criminalizá-lo ou descriminalizá-lo?
Os dados sociais oferecidos por aqueles que são a favor da legalização do aborto falam que as mulheres estão iniciando a vida sexual cada vez mais cedo e, quando engravidam jovens, são obrigadas a perder toda a sua juventude para criar de uma criança que muitas vezes nem pai presente terá. A gravidez na adolescência compromete os estudos e a carreira da jovem. Se o aborto foi legalizado, essa mazela seria sanada. Pergunto: em que medida esse tipo de raciocínio contribui para que melhoremos como sociedade e como seres humanos?
Existe uma diferença entre ser a favor do aborto e ser a favor da legalização do aborto. Ser a favor de sua legalização não é ser a favor do aborto. Entendo isso. Mas ouvir que “não criminalizar o aborto não é incentivar sua prática” e que “em países onde o aborto foi legalizado o número de abortos não aumentou efetivamente” não são coisas simples. Ambas colocações que vêm no sentido de proteger a mulher pobre e, vejam que interessante e paradoxal: quanto mais imaginamos um livre-arbítrio para escolher, mais nos tornamos escravos porque precisamos de regras que limitem, justifiquem e expliquem a liberdade.
Se uma pessoa perde a consciência, ou mantém a consciência e perde a sensibilidade de todo o resto do corpo, ou seja, fica tetraplégica, temos o direito de praticar a eutanásia? Dizer que o feto ainda não sente dor, ainda não tem sistema nervoso formado e nem cérebro, não justifica. Em muitos casos, fetos sobrevivem às várias tentativas de aborto, uma vez que antes de nascer, já existe algo que os faz “brigar” por suas próprias vidas. Dizer que a mulher pode fazer o que quiser com a vida dela não significa dizer que ela possa fazer o que quiser com a vida que carrega dentro de seu corpo. O. Feto não faz parte do corpo da mulher, ele não é um prolongamento do corpo da mulher, ele é um ser próprio que está instalado no corpo da mulher. Ele é um ser tal e qual alguém que teve morte cerebral ou ficou tetraplégico. De alguma forma, ele não pode se defender e se tirarmos a sua vida é uma vida que estamos tirando e isso significa matar sim senhor.
Não acho que “se o aborto for legalizado ninguém mais vai usar camisinha pois vai poder abortar“. Não acho possível que alguém ache que abortar é igual tirar um cravo. Entendo que, em certa medida, a criminalização do aborto pune apenas e exclusivamente mulheres já em situação de risco. Sei que mulheres ricas abortam e que elas só não morrem ou ficam inférteis por isso (ao menos não na maioria das vezes) porque o fazem em condições melhores. Ainda assim, elas sofrem em silêncio, muitas vezes sem apoio psicológico e passam a vida se sentindo criminosas pois não podem desabafar com praticamente ninguém.
Então, descriminalizar o aborto seria dar uma certa condição de igualdade para que todas as mulheres façam essa “escolha” e não se sintam criminosas – ainda que esse ato seja algo deplorável e digno de pena de quem vai ser submetido a ele. Aborto e legalização do aborto são coisas diferentes, nessa esteira, porque o primeiro significa ser a favor de envenenar fetos indefesos ou interromper uma vida que, dizem, ainda não tem sentido. O segundo é ser a favor de legalizar a primeira em algumas ou em todas a situações mesmo que se concorde que é um ato, literalmente, execrável.
Voltando a minha opinião de que escolhas não existem, perguntaria você: “se eu não posso escolher como posso ser julgado?” Justamente. Eu acho que essa ideia de ‘escolha’ leva diretamente a outras como de julgamento e moral que eu não aceito como objetivas e universais. Mas, continuaria você, se não há certo nem errado, matar, por exemplo, seria lícito? O aborto seria lícito? Se estou criticando a escolha, estou dizendo exatamente que quem mata não teve outra alternativa; o que não quer dizer que um assassino não deva ser condenado porque entendo que o ‘mal’ pode ser considerado como aquilo que prejudica o outro.
No caso da mulher, eu não estou querendo julgar ninguém. Pelo contrário. Quero acabar com esse julgamento sendo ou não legalizado o aborto. Acho, friso, que legalizar é, por um ângulo, fazer com que nós mulheres nos tornemos mais ainda submissas a uma sociedade machista pelos motivos pelos quais as mulheres recorrem ao aborto. O ponto é que penso na mulher em si, no que a movimenta, no que a engrandece e a diminui e dispenso um critério exterior e moral para julgar as coisas.
Legalizar o aborto, penso eu, nos enfraquecerá e nos tirará muitas essências. Há muita coisa por detrás dessa discussão que não vi sendo colocado em nenhum dos textos feministas. Ou essas mulheres estão sendo muito ingênuas ou eu, realmente, ando vendo cabelo em ovo.
Compreendo, vale observar, que a liberdade da vontade não poder ser coerentemente pensada através de conceitos (uma vez que, em última instância sempre caímos ou no determinismo ou no acaso) não significa que sua possibilidade esteja negada. Mas não consigo desistir da ideia de que a metáfora da bifurcação e de caminhos escolhidos é uma invenção que só nos serve para nos gerar culpa e medo. No caso do aborto ser legalizado, essa metáfora do caminho fará parte da decisão (como já faz parte de todos os discursos) e eu não posso aceitar que isso fará que a mulher (ou o ser humano) esteja, de fato, pensando corretamente. Acho, sinceramente, que não estão nem pensando.
Se entendo que agi mal em uma situação é pelo fato de ter feito uma coisa de uma determinada maneira e ter tido um resultado ruim. Neste caso, tentarei mudar, digamos, a química de meu corpo ou o meu modo de pensar para que eu seja capaz de agir de uma forma diferente quando submetida a uma situação similar. Isso vale para o aborto. A mulher quando engravida se ela se sente mal ou desprotegida ou apavorada… seria exatamente por quê? Se estamos querendo ser, digamos, iguais aos homens ou não sermos tão condenáveis assim por que defender a atitude de poder abortar e não atacamos o comportamento de todos que levam a mulher a ter essa atitude quando outras seriam possíveis (ainda que também nada fáceis) como o encaminhamento da criança para adoção?
Como disse no início, sou contra o aborto e a sua legalização. Acho, sinceramente, que isso só vai contribuir para que retrocedamos como seres humanos e seres pensantes. Se quero que a mulher viva melhor, eu desejo que nenhuma tenha que passar por isso.
———————-
*Como disse Mário Quintana, o aborto não é, como dizem, simplesmente um assassinato. É um roubo… Nem pode haver roubo maior. Porque, ao malogrado nascituro, rouba-se-lhe este mundo, o céu, as estrelas, o universo, tudo! Fernando Sabido corrobora: “matar não é tão grave como impedir que alguém nasça, tirar a sua única oportunidade de ser“.
O cantor Agnaldo Rayol, uma das vozes mais emblemáticas da música brasileira, faleceu nesta segunda-feira,…
Uma recente declaração de um padre sobre o uso de biquínis gerou um acalorado debate…
A minissérie brasileira que atingiu o primeiro lugar no TOP 10 da Netflix retrata um…
O ciúme retroativo é uma forma específica e intensa de ciúme que pode prejudicar seriamente…
Este comédia romântica da Netflix com uma boa dose de charme e algumas cenas memoráveis…
Baseado em uma história real de tirar o fôlego, este filme de ação estrelado por…