Imagem: Tatevosian Yana/shutterstock
O mundo nunca foi uma maravilha. Sempre houve miséria, desigualdade, egoísmo, exploração de homens e da natureza, preconceitos de diversos modos, enfim, uma série de atrocidades que apenas nos desumaniza e nos desintegra enquanto humanidade.
Lutar contra essas arbitrariedades, buscando de algum modo modificações, sempre foi algo extremamente difícil, uma vez que existe todo um sistema que corrobora para que isso ocorra e o ser que se rebela contra tudo isso é tão somente um grão que compõe o mesmo sistema.
As mudanças tornam-se ainda mais difíceis na medida em que a razão é utilizada para justificar tais atos e isso, infelizmente, é recorrente na história. Diante disso, o desânimo e a desistência na luta por modificações se tornam quase que inevitáveis.
Entretanto, desistir é apenas sucumbir à força racional que justifica tanta miséria. É preciso ir além da racionalidade e atingir a afetividade, já que o afeto, em tempos de egoísmo sombrio, é o maior ato revolucionário que podemos ter.
Antes de prosseguir, é necessário esclarecer que esta não é uma ode à irracionalidade. A razão é extremamente importante, mas ela possui limitações, as quais o afeto desconhece. Além disso, como dito, ela pode (e recorrentemente é) ser utilizada como um forte instrumento de manutenção de poder.
Basta observar que vivemos em um período extremamente racional, porém, a miséria social só faz aumentar, estamos cada vez mais tristes e sozinhos, conectados com o mundo e distantes da vida, cercados de muros de concreto e isolados pelo medo. Então, nem sempre a razão é a melhor saída e, parece-me, que nesta quadra da história tem nos faltado afeto, pois é ele que permite que a sensibilidade – tão rara, mas essencial – exista.
Ao sair do campo racional, o qual tende a nos prender em nós mesmos, tornamo-nos mais sensíveis para com o mundo. O que o outro faz e sofre torna-se alvo também dos meus pensamentos e, consequentemente, das minhas ações.
É o afeto, a sensibilidade, que permite que enxerguemos para além do que simplesmente está exposto visivelmente aos olhos. Isso ocorre porque a racionalidade está preocupada em explicar, já a sensibilidade está preocupada em entender.
Sabemos bem disso, afinal, quando não estamos nos sentindo bem, o que mais queremos é alguém disposto a apenas nos entender, e, “curiosamente”, o que mais recebemos são explicações racionais sobre o que estamos sentindo.
Essa visão instrumentalmente racional das coisas, seja no campo social, seja no campo individual, não permite que as situações sejam modificadas, justamente, por estar destituída da capacidade de sentir aquilo que os olhos da razão sempre tendem a normalizar e padronizar. No entanto, toda vez que se faz isso, desconsidera-se as particularidades presentes naquela problemática (social ou individual).
Exemplificando isso, se nós olharmos para alguém que vive em condição sub-humana, de miséria, apenas com olhos racionais instrumentais, provavelmente, nós iremos explicar aquela condição pelo sujeito estar fora do mercado de trabalho ou algo do tipo; do mesmo modo, caso alguém do nosso convívio social esteja passando por um momento difícil, sentindo-se deprimido e completamente para baixo, o mais trivial de se ocorrer é essa pessoa ser chamada de “fresca”, de “mole”, de “fraca”, por ficar choramingando por “idiotices”.
Todavia, são essas “idiotices” que, em geral, a razão não alcança, pois são nelas que se encontram os sentimentos das pessoas – os seus sonhos, seus desejos, seus sofrimentos, suas frustrações, seus problemas, suas decepções, suas alegrias, suas dificuldades, suas lutas – e estes dependem de um olhar afetuoso, sensível e poético para ser compreendido.
Ao olharmos com afeto, podemos enxergar que por trás de alguém vivendo na sarjeta da rua ou na sarjeta da mente, há um ser humano que necessita desesperadamente de alguém que tente compreendê-lo nas suas entrelinhas.
Como disse, em tempos de egoísmo sombrio e quase absoluto, de valores degradantes para o ser humano e mecanização da vida, o afeto é revolucionário, porque ele é capaz de quebrar a barreira racional que divide os seres humanos em compartimentos individuais e dar conexão a nossa existência.
Apesar das dificuldades, ele consegue sim mudar realidades – porque quando a partir de um olhar afetuoso se modifica uma vida, uma situação, o mundo já está mudando – já que é consertando o homem que a gente conserta o mundo. Albert Camus disse: “Eu me revolto, logo existimos”.
Estou convencido de que essa revolta está no afeto, porque, quando isso ocorre, mais do que singularmente, nós existimos de forma plural e humana. E essa sempre será a maior das revoluções.
Imagem de capa: Adolescente americana Jan Rose Kasmir oferece flor aos soldados americanos da Guarda Nacional durante o protesto anti-Vietnã, 1967.
Fotografia: Marc Riboud.
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