Categories: Vanelli Doratioto

O amor me disse que na chuva ele floresce

Quando a água do mundo resolve lavar os céus, quase sempre, corremos para todos os lados, protegendo os cabelos, as roupas e os sapatos.

É que a água pode atrapalhar alguns planos, pode nos desarrumar para a reunião do dia, pode bagunçar os preparativos para o almoço ou avivar a percepção gelada de uma brisa fresca em nosso corpo.

Mas existem os que não se importam com a chuva, existem aqueles que vivenciam, delicados, a chuva de outra forma. E não digo daqueles que o fazem pelo calor da tarde de um dia de verão, tão pouco das crianças embaladas pela alegria da infância, falo dos que estão protegidos pela aura luminosa do amor.

Beijos e abraços na chuva levam, em filmes, as convenções sociais para o ralo. Vocês já devem ter assistido a uma dúzia deles nos quais os mocinhos se engalfinham molhados no ápice do romance, mas não só em filmes isso acontece, na vida também.

Foi o que concluí ao passar correndo, e afoita, por um casal, que em uma longa calçada de uma rua industrial, se abraçava demorado, embaixo de muita água.

Ele usava óculos e tinha uma mochila nas costas, ela vestia jeans e uma camiseta azul discreta e os dois inevitavelmente vertiam amor por todos os poros. Mas o amor deles não era aquele de carícias, de línguas e passadas de mão. Era um amor desprovido da ânsia da carne, era um amor de dois que se encontram ou se despedem depois de muito tempo separados.

Notei que, a despeito da chuva que caia, os braços permaneciam rijos e apertados, e que eles, discretos, de olhos fechados, explanavam ao mundo que não era preciso verbalizar nada. Eles se entendiam no silêncio do querer bem. E para mim, naquele instante, ficou claro que os dois só queriam um filete a mais de tempo para ficarem juntos. Que eles só queriam dispor de um pouco mais de tempo para se sentirem e se amarem. Para eles não importava o aspecto desse tempo. Fosse ele seco ou molhado, seria nele que caberia, apertado, o abraço da vida.

E ali, naquele canto ermo da cidade, eles pareciam estáticos. O mundo girava, as gotas caíam grossas, tudo no entorno se transformava, mas não eles, eles pareciam tocados por um delicioso torpor.

O amor daqueles dois era mais forte que tudo que os cercava, o amor que os embalava tinha o poder mágico de transportá-los para outros lugares, para outros gostos, cheiros, lembranças e impressões. O amor que os habitava era capaz de livrá-los de sensações que não fossem aquelas engendradas pelo reencontro ou pela despedida.

Aquele amor emudecia o mundo e tapava os olhos deles para os que passavam, dizendo carinhoso que nada mais importava. Aquele amor era capaz de transcender, de encharcar o corpo de calores e deixar a alma marcada para sempre.

Percebi que o amor em sua gentileza guardava-os de qualquer zanga pelo mau tempo ou pelo vento que acompanhava aquela chuva.

Talvez no mundo o amor tivesse que ser assim. Talvez o amor tivesse que brotar apertado em meio às convenções. Talvez o amor tivesse que se contentar com um tempo espremido.

Mas o amor em sua grandeza não se importa com o lugar, com o momento, com a chuva ou com o vento. Ele simplesmente é, e o é com uma força arrebatadora.

O amor naquele dia encheu de vida a rua cinza de fábricas alongadas e tristonhas. O amor naquele dia disse a quem o quisesse ouvir que ele é maior que tudo. Que ele é mais forte que o tempo, que o vazio e que a chuva juntos.

O amor cantou aos meus ouvidos que ele não se curva às circunstâncias, que ele é onde tem que ser, do jeito que dá. Que ele não se alimenta de desculpas ou do que é efêmero.

O amor me disse ali que ele não se apaga com água. O amor me disse ali que na chuva ele floresce.

Acompanhe a autora no Facebook pela sua comunidade Vanelli Doratioto – Alcova Moderna

Vanelli Doratioto

Vanelli Doratioto é especialista em Neurociências e Comportamento. Escritora paulista, amante de museus, livros e pinturas que se deixa encantar facilmente pelo que há de mais genuíno nas pessoas. Ela acredita que palavras são mágicas, que através delas pode trazer pessoas, conceitos e lugares para bem pertinho do coração.

Recent Posts

Com Julia Roberts, o filme mais charmoso da Netflix redefine o que é amar

Se você é fã de comédias românticas que fogem do óbvio, “O Casamento do Meu…

11 horas ago

O comovente documentário da Netflix que te fará enxergar os jogos de videogame de outra forma

Uma história impactante e profundamente emocionante que tem feito muitas pessoas reavaliarem os prórios conceitos.

20 horas ago

Nova comédia romântica natalina da Netflix conquista o público e chega ao TOP 1

Um filme charmoso e devertido para te fazer relaxar no sofá e esquecer dos problemas.

21 horas ago

Marcelo Rubens Paiva fala sobre Fernanda Torres no Oscar: “Se ganhar, será um milagre”

O escritor Marcelo Rubens Paiva, autor do livro que inspirou o filme Ainda Estou Aqui,…

1 dia ago

Série que acaba de estrear causa comoção entre os assinantes da Netflix: “Me acabei de chorar”

A produção, que conta com 8 episódios primorosos, já é uma das 10 mais vistas…

2 dias ago

Além de ‘Ainda Estou Aqui’: Fernanda Torres brilha em outro filme de Walter Salles que está na Netflix

A Abracine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) considera este um dos 50 melhores filmes…

2 dias ago