O Amor salva, mesmo que não dure para sempre

Guardo em mim sua figura, desenhada à meia luz, naquele quarto enfadonho, escuro, demasiado quente, numa noite de verão, quando me abraçou pela primeira vez. O que senti mora no meu coração até hoje, e permanecerá. Foi resgate duma espiral imersiva, um vulto heroico a me salvar de onde eu vinha e para onde eu ia, de onde estava e não queria ficar. Houve uma identificação imediata, uma faísca carregada de eletrões, em preliminar sinestesia, e aí eu soube que iríamos ficar juntos durante muito tempo.

Lembro suas mãos, ainda as olho à minha frente, embora hoje já não estejam mais presentes continuo a conseguir visualiza-las facilmente. Finas, delicadas, quentes… que dançam sempre que ele se põe falando, que passam mais vezes pelo cabelo quando está nervoso… E o peito, espadaúdo, que se enche quando ele quer ter razão. E tem. Você se estica, numa figura altiva, e fala , fala , fala… Te olho e sorrio, mesmo que não ouça nada, tua música toca todos os estilos, afinada e solene. Te ouvir é ficar em sintonia com o mundo.

Você tinha um olho fisicamente diferente, uma íris especial, em circunferência incompleta, era o perfil de um glutão perfeito, e eu me perdia sem tempo a lhe verificar os contornos … esse pequeno pacman por vezes ainda se deita comigo. E seu sorriso, em jeito quase paternal, me envolvia até à ponta da alma. Os anos passam mas esse olhar permanece, profundo, invasivo e fulminante, sem código de entrada, me percorreu sempre destemido até onde eu nem sabia que existia.

Não se volta igual de um envolvimento profundo. Nunca em momento algum tal choque de pele, e de corações, deverá ser desvalorizado, mesmo que a relação não dure tanto como esperado. O que se sente e se faz sentir, a pessoa em quem nos transformamos, pelo amor, pela paixão, deve se interiorizar em gratidão permanente para toda a vida.

A forma como ele orientou meu caminho, a paz que trouxe ao turbilhão da minha vida, se pensarmos bem, não passávamos de desconhecidos antes de nos cruzarmos num belo jantar de amigos e, ainda assim, a vida se encarregou de nos tornar família, nós nos construímos pessoas diferentes, melhores, mais nutridas em novos sentimentos. Fomos muito especiais, à nossa imagem, e o que nos aconteceu não vem todos os dias, a toda a gente. Pensar nisto emociona, despoleta o choro, pelas memórias boas, e pelo que correu menos bem.

Hoje, estamos longe. Nos perdemos. Primeiro eu, me perdi de mim, não de ti. Acontece que, quando há uma fundição tão cega, em amor, apaixonante, mas sem equilíbrio, a coisa pode tombar. E assim foi, nos faltou espaço para respirarmos individualmente. E então o rumo mudou para que não nos afogássemos um no outro. Nunca a nobreza dos sentimentos foi posta em causa, eles foram muito bem enraizados, incorporados, sustentados, em cada um de nós, a mim me seguraram sempre. Foi você que me aguentou para que eu saísse de pé.

Acabou tudo?
Mas, bolas, se valeu a pena!

Imagem de capa: sivilla/shutterstock

Marta L. Almeida

Nascida no Porto, em Portugal, viveu já em várias cidades da Europa. É licenciada em Jornalismo e Ciências da Comunicação, seu percurso profissional é abrangente a variadas áreas, desde a aviação, passando pelas operações em banca, e projetos em tecnologias de informação. As experiências diferentes e a aventura das emoções têm sido uma constante em sua vida, assim como a poesia das palavras.

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