Na narrativa bíblica do livro do Levítico, o “bode expiatório” é um animal que era separado da manada e colocado na natureza selvagem como parte das cerimônias hebraicas do Yom Kippur, o Dia da Expiação, um ritual que ocorria na época do Templo de Jerusalém.
Simbolicamente, o “bode expiatório” representa pessoas ou grupos escolhidos de modo arbitrário para levar sozinho a culpa de uma calamidade, crime ou qualquer evento negativo – que geralmente não tenha cometido –, uma vez que existem interesses de colocar a culpa em alguém.
A busca do “bode expiatório” era um importante instrumento de propaganda. Dois exemplos históricos, a perseguição dos judeus durante o período nazista. Eles foram acusados pelo colapso político e econômico da Alemanha. E no regime do apartheid do governo da África do Sul, os negros vieram a ser culpados pelos brancos pela sua miséria.
Na sociedade contemporânea, os grupos utilizados como “bode expiatório” são aqueles selecionados para carregar o sentimento de culpa, variando de acordo com o local e o período. Por exemplo, culpar os gays pela destruição da família, culpar as mulheres pelos estupros, culpar os negros pelo racismo, culpar os índios pelo seu genocídio e culpar os imigrantes ou refugiados pela crise econômica dos países.
Nas relações humanas, certos indivíduos têm reforçado de forma neurótica o sentimento de culpa e com isso a necessidade de apontar o dedo para o “bode expiatório, ” porque é mais fácil culpar terceiros, por não entender ou não saber lidar com suas frustrações e decepções, responsabilizando os outros no ponto de vista moral e psicológico.
Nesse sentido, filhos culpam os pais pelas brigas na família, professores culpam os alunos pelas notas baixas, maridos culpam as mulheres pela falta de afeto no casamento, médicos culpam os pacientes pelas suas doenças, torcedores culpam os técnicos pelas derrotas do seu time, os crentes culpam os “demônios” pelas doenças e desemprego, etc. Cria-se um círculo vicioso, que transforma a tudo e a todos em culpados, inclusive imaginários, sem compreender a origem dos sentimentos de culpa.
Portanto, o “bode expiatório” é a transferência do sentimento de culpa, que se constitui em um ato irracional e ilusório – sem a constatação real dos sentimentos e dos fatos –, alimentando a ansiedade e a angústia em relação a si mesmo, que são transferidas de maneira inconsciente ou consciente para outras pessoas.
O filósofo alemão Friedrich Nietzsche diz que esses sentimentos são inseparáveis da moral judaico-cristã, visto que Nietzsche era um feroz crítico dos princípios cristãos. E para ele são comiserações que se tornaram tão comuns que podem nos levar a acreditar que elas são inerentes ao ser humano.
Sigmund Freud, em direção oposta, afirma que essas emoções persistem em perturbar todas as tentativas dos homens de viverem juntos e que, ao ser recalcadas, retorna sobre o sujeito sob a forma de sentimento de culpa. Para a psicanálise, o “superego” compõe as normas morais, que vamos sufocando desde que somos crianças, e que termina entre a culpa e a moral. Enfim, é a nossa cultura patriarcal, que só obtém seu objetivo através da consolidação do sentimento de mal-estar. Paga-se com a perda de felicidade pela intensificação do sentimento de culpa.
Imagem de capa: vchal/shutterstock
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