O brasileiro não nasceu para ser inteligente. E direi mais: — nem pode ter um parente inteligente. Parece exagero ou piada. (Já expliquei que as verdades mais solenes podem assumir, por vezes, a forma de piada.) Nada mais trágico para uma família brasileira do que ter, em seu seio, um caso de inteligência. Eu citaria, para não ir mais longe, o exemplo de Rui Barbosa.
O maior dos brasileiros vivos. Lembro-me de sua agonia em Petrópolis. Rui estava morre, não morre, e já um vizinho nosso antecipava: — “O maior dos brasileiros mortos”. Eis o que eu queria dizer: — o grande baiano foi uma das mais negras tragédias familiares de que tenho notícia. (Não estou insinuando nenhum escândalo, desses que, em nosso tempo, merecem a manchete de O Dia e da Luta Democrática. Não, não. Por esse lado a família de Rui foi de uma correção imaculada. Faço a ressalva com a maior ênfase.)
A partir do momento em que, ainda menino, manifestou o seu gênio, a família perdeu a paz, o sossego, o diabo. Um vago primo, ou cunhada, ou tia, deixou de ter vida própria. Ninguém namorava, ninguém noivava, ninguém casava e nem enviuvava. O tempo era pouco para admirar o Gênio. E ficava toda a parentela de mãos postas, estupefata. Durante setenta anos, a família foi massacrada. Velórios, bodas, partos, nenhum acontecimento lúgubre ou festivo valia uma coriza daquele que era “o maior dos brasileiros vivos” e seria “o maior dos brasileiros mortos”.
E o próprio Rui? Como se comportava ele diante de si mesmo? Como reagia diante da própria glória? Eis a verdade; — o gênio nunca foi um hábito para Rui. E aí está um traço forte do brasileiro e repito: — o brasileiro não sabe ser inteligente com naturalidade. Vejam o francês. Jean-Paul Sartre, por exemplo. É um homem que inspira, aqui, admirações abjetas. Dizem: — “A maior cabeça do mundo”. Pois Sartre é inteligente com relativo tédio. E, por vezes, tem o que eu chamaria “a nostalgia da burrice”. Nessas ocasiões, diz as bobagens mais hediondas.
Do mesmo modo, o inglês, que também é inteligente sem espanto, sem angústia, sem deslumbramento. E não há mistério. O inglês, ou francês, encontra a língua feita e repito: — um idioma que pensa por ele. Uma lavadeira parisiense é uma estilista, um cocheiro fala como um grã-fino de Racine. Ao passo que nós temos de recriar, dia após dia, a nossa língua e pensar em péssimo estilo.
Mas citei Rui e passo a um exemplo mais moderno: — o nosso Guimarães Rosa. “Ser Guimarães Rosa” não foi, jamais, um hábito para Guimarães Rosa. Era um permanente espanto, uma permanente surpresa, uma permanente festa. Dormia e acordava espantadíssimo de ser ele e não um imbecil qualquer. Conta-me Carlos Heitor Cony um episódio magistral. Vamos ao fato.
Os dois encontraram-se em Brasília. Conversa daqui, dali e, de repente, Guimarães Rosa faz pose. (Na vida real, Guimarães Rosa posava muito de Guimarães Rosa.) A seu lado Cony perfila-se como se fosse ouvir o Hino Nacional. Suspense. E, então, erguendo a fronte e olhando para o fundo da tarde, disse o grande ficcionista: — “A vida de Getúlio não fazia prever aquele fim”. Retira o olhar do vago horizonte e perscruta na cara de Cony o efeito provocado.
Como única testemunha auditiva e ocular da tirada, Cony não sabia o que dizer e o que pensar. Não há ninguém, vivo ou morto, que não faça suas concessões ao Conselheiro Acácio. Impossível nascer, envelhecer ou morrer sem ser acaciano muitas e muitas vezes. Mas um Sartre é acaciano com a maior e a mais insolente desfaçatez. Aqui no Brasil o gênio francês deu uma entrevista coletiva. Em dado momento, saiu-se com esta: — “O marxismo é inultrapassável”.
Mas Sartre falava assim porque nos supunha, a todos, cristalinos imbecis. Já o Guimarães Rosa acreditava na própria frase e insisto: — ele a trabalhara. Numa amarga perplexidade, Cony limitou-se a um pigarro: — “É mesmo, é mesmo”. E passaram a outro assunto. Mas ali estava o brasileiro. O brasileiro inteligente tem vergonha de dizer um modesto, um honrado “oba”. Sim, ele se considera degradado se largar um “bom-dia” sem lhe pingar gênio.
Depois da morte do autor do Grande sertão, o Cony fez uma devassa na obra rosiana para descobrir o que nela há de acaciano. Mas é um equívoco. Cony não quer aceitar que o gênio está muito mais próximo do Conselheiro Acácio do que o idiota ou o medíocre. Falei de Sartre e posso lembrar outro gênio, Bertrand Russell. Num dos seus manifestos pacifistas diz ele, por outras palavras, o seguinte: — “Vive-se no comunismo, no capitalismo, como se viveu no nazismo. Portanto, não vale a pena morrer por coisa alguma. Devemos viver, que é muito mais seguro”.
Dirá alguém que não foi isso que ele quis dizer. Foi, sim. Está lá no hediondo manifesto, publicado em todos os idiomas. Ora, o que diz Bertrand Russell é de uma torpeza cristalina. Por outro lado, o que ele propõe não tem nada a ver com o ser humano. O mais degradado dos seres prefere morrer por três ou quatro valores de sua estima. Um gangster morre defendendo o seu estilo de vida.
Mas dizia eu que um simples caso de inteligência, numa família brasileira, pode destruí-la. Conheci uma menina que, por azar, era filha de um pai inteligente ou supostamente inteligente. Tias, cunhadas, vizinhos, cochichavam: — “É uma cabeça! Uma cabeça!”. O velho fazia uns sonetos parnasianos. Li um deles, que a filha me mostrou, tremendo de beleza. Guardei dos versos uma palavra que ainda me atropela: — arrebol. Pois a garota não casou nunca. Viveu para o pai. Morreu antes dele, tuberculosa. Pode-se dizer que foi assassinada por uma meia dúzia de sonetos jamais publicados.
Volto agora a Guimarães Rosa. Leio nos jornais que suas filhas estariam brigando. E com quem? Com a senhora que viveu trinta anos com o grande ficcionista. Escapa-me um comentário de vizinho: — “Trinta anos não são trinta dias”. Não se trata de uma rixa intranscendente. Não. Segundo sei, a coisa assume a forma judicial. Há advogados, de um lado e do outro, chicanando em torno de uma obra formidável. Para sair uma linha de Guimarães Rosa é uma batalha forense.
Estive, há tempos, com uma das filhas do escritor, Vilma. Foi uma conversa carinhosíssima. Mas Vilma negou, com a maior veemência, que existisse a briga. Absolutamente, e pelo contrário. Mas agora insistem os jornais: — a obra rosiana estaria praticamente interditada, enquanto não se decide a questão. E, então, eu pergunto se uma família brasileira pode devorar-se porque um dos seus membros é ou foi inteligente. Mas, como não tenho medo do Conselheiro Acácio, repito, para as filhas do grande autor, esta reflexão de vizinho: — “Trinta anos não são trinta dias”.
[17/2/1968]
A ex-dançarina do 'É o Tchan' resolveu remover o ácido hialurônico aplicado em seu rosto…
O icônico poste listrado giratório presente na entrada das barbearias carrega um simbolismo que poucos…
Uma série perfeita para maratonar em um fim de semana, com uma taça de vinho…
Alerta Lobo ( Le Chant du Loup , 2019) é um thriller tenso e envolvente…
Uma nova atração turística promete movimentar o turismo nas divisas entre o Rio de Janeiro…
O Detran de Goiás (Detran-GO) divulgou uma informação curiosa que tem gerado discussão nas redes…