O CAQUI
Gosto muito da Itália. Lá fiz muitos amigos. O que sinto é não saber falar italiano, uma língua tão bonita. Lá, quando vou fazer uma fala, tenho de me valer de um intérprete. De vergonha, pus-me a estudar italiano. Estudo o “Berlitz” antes de dormir.
Pois me convidaram a fazer uma fala num congresso da “Fundação da Carta da Terra.” Carta da Terra é um tipo de “Direitos Humanos”. É um documento lindo, que deveria ser objeto de estudo nas escolas e no Congresso Nacional.
Pediram-me que falasse poeticamente sobre “Jardins”, que é um dos temas que repito sempre. O que é belo deve ser repetido, como os poemas e as músicas. Mas, vocês sabem, existe dentro de mim um Rubem brincalhão… Aí comecei a falar sobre o “Paraíso”, que é o grande sonho de Deus – para aqueles que lêem as Escrituras Sagradas.
Lembrei-me da tela de Dürer em que pintou Adão e Eva, os seres paradisíacos. Adão e Eva, corpos esculturais, cheios de vida. Notei, entretanto, que o pintor cometeu três erros.
Primeiro, ele colocou umbigos na barriga de Adão e de Eva. Por esse erro ele poderia ter ido parar na fogueira. Esse detalhe, Adão e Eva com umbigos é, claramente, uma heresia. Umbigos só existem em seres nascidos de mulheres. Mas Adão e Eva não nasceram de mulheres. Saíram diretamente das mãos do Criador. Portanto, não tinham umbigo.
Segundo erro: Adão e Eva foram pintados ainda no seu estado de inocência. Prova disso está no fato de que as maçãs que têm nas mãos ainda não foram mordidas. Estão inteiras. Portanto, como diz o texto bíblico, eles estavam nus e não se envergonhavam. Assim sendo, não existe razão alguma para que eles sejam pintados colocando o precário galho com uma maçã na ponta sobre as partes mais interessantes do corpo. Eles deveriam estar exibindo despudorada e castamente a sua linda nudez.
E, em terceiro lugar, o pintor pintou a maçã como sendo o fruto tentador, o furto [ Revisor: é “furto” mesmo ]proibido. O que está errado. O fruto proibido tinha de ser um fruto de potência sedutora máxima. O que não é o caso da maçã. A maçã é fruta pudica. Não se despe por vontade própria. Só tira a roupa sob a violência da ponta da faca. E ainda geme quando é mordida. Comer uma maçã é sempre um estupro.
Acho que o fruto tentador só poderia ter sido o caqui. O caqui inteiro é tentação. É só olhar pra ele para que ele diga, vermelho e lascivo: “Me coma, vá…” E basta relar o dedo na sua carne para que ele se dispa e seus sucos vermelhos comecem a escorrer.
As potências eróticas, heréticas, filosóficas e teológicas do caqui estão presentes no poema “O Caqui”, de Heládio Brito:
“O vento, o vento ali.
Mínimo sol por d’entre galhos,
de trás, de frente, álacre, o caqui.
Um ser-aí. Cá, aqui.
Redondo gesto e gesta vegetal
e uma festa de cor, pingo no i.
Bem maior que a pi-tanga,
menor que a manga,
o seu raio (ex)sangra,
dois, vezes o pi.
A pele tranasluz. Si dá.
A carne é mansa. E-d’entro
o hirto centro: sêmen
te do existir e hífen do prazer.
Não vi? E é fruta.
Ou é fruto do inconsciente?
Abrupto estar, não-ser-aíí?
Ou é silêncio ou grito?
Ou é sumo ou suma teológica?
Uma fruta? Fruto-em-si?
Comi? Ou não comi?
E é acre. Doce. Pouca.
Nódoa, travo na boca. E o vento, o vento ali…”
( Oficina, Papirus, p. 11 ).
Foi isso que disse Adão depois de comer o caqui…
No dia seguinte recebi um telefonema de uma pessoa que eu não conhecia. Convidava-me a visitar um prédio que em tempos passados havia sido um mosteiro onde viviam reclusas e castas duzentas freiras. Aceitei o convite e fui na hora marcada. Ele me levou então para o jardim interior do mosteiro e me contou a seguinte história:
“Depois da bomba atômica que matou 200.000 pessoas em Hiroshima e torrou todas as coisas vivas, houve uma árvore que sobreviveu. Era um caquiseiro. Esse caquiseiro passou a ser então, , para o japoneses, um símbolo do triunfo da vida sobre a morte. Os japoneses o tomaram sob seus cuidados, colheram seus frutos, plantaram suas sementes e espalharam suas mudas por muitas cidades do mundo. Uma das cidades agraciadas com essa dádiva fora Brescia, onde estávamos.”
Me apontou então para uma árvore plantada no meio do jardim. Estávamos diante de uma filha ( quem sabe uma neta?) do caquiseiro que sobrevivera à bomba atômica de Hiroshima…
Senti-me como Moisés diante da árvore que se incendiava sem se consumir… Com medo de estar fazendo um pedido impróprio, perguntei-lhe se me seria permitido apanhar três folhas do caquiseiro. Ele disse que sim. Apanhei as folhas. Coloquei-as dentro de guardanapos de papel para desidratá-las. Trouxe-as para Campinas. Pintei-as com verniz para preservá-las do contacto com o ar. A seguir levei-as a uma loja especializada e mandei fazer um quadro.
As folhas estão agora na minha parede. Quem só vê o quadro não entende: as folhas não têm nenhuma beleza especial… Então eu conto a estória…
Passadas duas semanas recebi da Itália um e-mail. Informavam-me que a fundação que cuidava do caqui estava disposta a dar-me uma muda a ser plantada nalgum lugar. Onde? – me perguntei. Não na minha casa. Aquela árvore é um símbolo para o mundo todo. Não num jardim público. Tenho medo dos vândalos. Imaginei então que um bom lugar seria a Fazenda Santa Elisa. Faríamos um jardim cercado por um espelho de água com peixes e plantas aquáticas… E no centro, protegida pelo espelho dágua, a arvorezinha.
As escolas poderiam levar as crianças para visitá-la. E então os professores e professoras lhe contariam a história.
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