Por Ana Vieira Pereira
Faça como eu fiz: olhe rapidamente para essa foto, e feche os olhos. Não se preocupe em entender do que se trata, apenas abra-se para olhar. Não é preciso ver. Deixe essa ocupação para mais tarde, quando puder construir o tempo e o espaço do olhar atento, dedicado e amoroso. Quando quiser construir esse espaço de encontro. E se quiser, claro.

Eu quis. Vi a foto pela primeira vez ontem à noite. Por entre conversas, música, mil e um estímulos querendo arrancar-me a alma de dentro. Ela até parece que vai, mas não vai: a minha alma anda avessa à exposição das suas dobras. Deve ser para que não se transformem em vincos, essas espécies sutis de mortalhas.

Assim, à primeira vista, foi só luz o que vi na imagem. Sem saber por que, pedi-a a meu amigo, mais intuindo do que vendo de fato alguma coisa. A foto veio, rápida e ligeira nesse pé de vento que é a tecnologia. Ali mesmo, na mesa do bar, a imagem pula de um celular ao outro. Deixo-a em paz, quieta.

Horas depois, sem conseguir dormir, tenho vagar para dedicar-me a ela. Olho-a com tempo, senhor de todos os processos, e surpreende-me que essa luz que vi esteja dentro dos espaços das folhas mortas. Parecem luminosas, as folhas, mas estão mortas. O vivo do verde à sua volta é quase ofuscado por essa luz que não é da matéria, mas do espaço ao seu redor, e atinge a superfície para fazê-la rebrilhar. É só superfície. Assim que o sol mudar seu ângulo, a luz desaparecerá. Não há existência dentro da folha, a não ser aquela de que se nutrirão outros, aqueles que se alimentam da putrefação do que morre. O que está vivo é o tapete verde que as folhas querem esconder. A vida das folhas mortas é uma vida em reflexo.

O dono da foto ofereceu-me, além da foto, a sua legenda: “o chão que renasce”. E eu aqui, horas depois de ter visto a luz não só na foto, mas também nas retinas alheias, confirmo uma sequência inteira de impressões noturnas. Poderia ter dado o título de “gratidão” a este texto.

Esse chão que renasce, e que ganho de presente em imagem e palavra, nutre-se de momentos muito particulares. Momentos que surgem por detrás das paredes do tempo, espaços no avesso do espaço. É preciso inventá-los, a esses momentos. E é preciso inventá-los a várias mãos. Duas não conseguem. Podem acontecer em qualquer lugar, mas ontem foi aqui, nesta cidade que me acolhe assim que a vejo e me diz “afaste-se” no momento em que tento aproximar-me.

Chamou-se dançar, este chão renascido de ontem. Foi simples, até. Inventou-se um tempo e um espaço para o encontro. Não foi preciso inventar a vontade, mas inventou-se o movimento de ir na direção da música. E o resto inventou-se sozinho. Inventou-se o que era preciso para que a alma alcançasse os lugares que a fazem sentir-se viva, e dançasse em toda a sua extensão, e recebesse sem pedir o amparo que precisava. Uma brecha na insanidade. Um mergulho dentro da delicadeza da entrega pura. Tudo o que a minha alma, o meu coração e o meu corpo necessitam. Ainda que seja leve e breve como a passagem da brisa. Ainda que seja inventado. Ainda que seja de noite. Ainda que as folhas estejam mortas.

Reprodução do texto autorizada pelo blog parceiro

Ana Vieira Pereira é mestre e doutora em Literatura Comparada pela USP. Atualmente dedica-se ao ensino e à pesquisa da escrita dentro do âmbito da criação artística. Coordena o espaço Quinta Palavra, em Botucatu, e é assessora pedagógica da Escola Waldorf Rudolf Steiner, em São Paulo, e da Faculdade de Ciências Agronômicas da Unesp, em Botucatu. É autora de, entre outros, Do ventre ao berço: o parto em casa, Mistache Malabona e O dono do castelo.

CONTI outra

As publicações do CONTI outra são desenvolvidas e selecionadas tendo em vista o conteúdo, a delicadeza e a simplicidade na transmissão das informações. Objetivamos a promoção de verdadeiras reflexões e o despertar de sentimentos.

Recent Posts

Especialista em linguagem corporal desvenda significado de gesto do filho de Trump na posse

Barron Trump chamou atenção na cerimônia de posse do pai ao fazer um gesto curioso.…

23 horas ago

Filme romântico que chegou na Netflix vai aquecer seu coração e melhorar seu dia

Um filme doce, charmoso e divertido que oferece um descanso para o cérebro e faz…

1 dia ago

Pescadores se chocam ao descobrir restos mortais de criatura bizarra em pântano

Os pescadores dizem nunca terem visto nada parecido antes e descrevem o ser como "assustador"…

1 dia ago

Itens de luxo e viagens caríssimas: o que Fernanda Torres pode ganhar caso seja indicada ao Oscar

A atriz, que foi presenteada com mimos avaliados em até 1 milhão de dólares ao…

1 dia ago

Quem procurar quando você está desesperado e não sabe em quem confiar?

Quando enfrentamos momentos de desespero e não sabemos em quem confiar, a busca por ajuda…

2 dias ago

A importância da hidratação na rotina dos gatos

Você sabia que uma boa hidratação é fundamental para a saúde do seu gato? No…

2 dias ago